Uma pergunta muito comum para quem lê sobre a ascensão do nazismo na Alemanha é: “como um regime tão nefasto conseguiu chegar ao poder democraticamente?”.
Para ajudar a responder essa pergunta, tive a sorte de conhecer o jogo de tabuleiro Secret Hitler durante o aniversário de um amigo. Admito que o título pode soar estranho, especialmente para um jogo de tabuleiro, mas é bem exato. A experiência foi bem instigante, imprevisível e, como um bom jogo, esconde algumas situações de aprendizagem interessantes, divertidas e incomodamente pertinentes para os nossos tempos. Segue um pouco do cenário do jogo, minhas impressões ao jogar, como eu usaria ele em escolas e o que se pode aprender.
O Cenário
A ambientação é o parlamento alemão dos anos 30, justamente no período que precede a ascensão de Hitler. A situação envolve intriga política e está polarizada entre 2 grupos majoritários, fascistas e liberais: os primeiros querem usar o sistema para garantir a ascensão de Hitler e tomar o poder; enquanto os liberais trabalham para impedir a ascensão fascista e manter a democracia. Todo mundo sabe como essa história terminou no mundo real, certo?

Jogando
No início da partida cada jogador é designado de forma aleatória para um dos lados e deve esconder essa informação dos outros. As coisas ficam interessantes quando se percebe a assimetria do jogo. Logo depois desse início, todos os jogadores devem fechar os olhos e então apenas os fascistas podem abrir. Assim, eles se conhecem e sabem que é fascista no jogo. Com os olhos fechados, os liberais não sabem quem são e vão ter apenas a dedução para saber quem é quem. De qualquer modo, o jogador que é o Hitler, não deve se declarar nem para os fascistas. Se o Hitler for descoberto antes de tomar o poder os liberais podem derrotá-lo. O que adiciona uma camada de incerteza e aumenta o clima de intriga. Para piorar, há mais opções de leis fascistas que liberais, que aumentam o poder do estado contra as pessoas. Um reflexo do clima da época.
Os jogadores se revezam nos papéis de presidente e chanceler. O presidente da vez seleciona um chanceler e, se aprovados pelos votos da maioria dos jogadores, os dois vão respectivamente selecionar e aprovar as leis que escolherem, que são cartas escolhidas e colocadas em um placar.
Assim como os lados dos jogadores, as leis se dividem entre fascistas e liberais. Se mais leis fascistas são aprovadas, mais o estado assume características ditatoriais; se ocorre o contrário, mais limitado é o poder do estado e maior a chance da democracia sobreviver. Porém, a partir de um certo ponto, as chances fascistas aumentam a um nível que basta que o Hitler secreto se torne chanceler. Nesse caso, eles simplesmente tomam o poder e vencem a partida. Historicamente, foi isso que aconteceu em 1933 na república de Weimar (Alemanha pré-guerra).
Porém, quanto mais leis facistas entram, maior é o poder do estado e logo o chanceler pode investigar em segredo a vida dos congressistas, passa a existir uma polícia secreta. É quando o sistema de freios e contrapesos da democracia vai deixando de existir, centralizando poderes na mãos de poucos. Mesmo o assassinato se torna uma opção. Essas ferramentas, ainda que antiéticas em momentos dramáticos podem ser usadas contra os fascistas. Se o Hitler for morto o fascismo perde. Afinal, é um sistema que depende um líder forte. Isso ilustra bem como a grande questão não é se o político x é bom ou mal, mas o que o sistema lhe permite. Poder é uma via de mão dupla.
Essa assimetria de poder entre os dois times torna o jogo mais imprevisível e também descreve bem o contexto histórico da época. Onde pêndulo das circunstâncias estava favorável ao fascismo. O descontentamento geral cria um campo fértil para o extremismo. A articulação entre os fascistas, que sabem quem são, e a descoordenação dos liberais, que apenas suspeitam com quem podem contar, também ilustra bem as diversas correntes antifascistas que pouco se articulavam. Isso também torna o jogo emocionante e imprevisível. É preciso não apenas saber ler o comportamento dos outros jogadores, mas também observar o “rastro” que esse comportamento sugere para descobrir os verdadeiros papéis de cada um. Parece até política de verdade.
O potencial didático
Além do exercício de dedução e habilidades socioemocionais como autorregulação, comunicação e trabalho em equipe, o jogo é excelente para mostrar o contexto histórico da ascensão do nazismo na Alemanha e despertar interesse no assunto. Demonstrando bem como o fim da democracia e a ascensão de uma ditadura é um processo que depende da habilidade de seus operadores. Como o jogo é uma simulação muito simplificada do processo político e legislativo alemão pré-segunda guerra, a experiência descreve como o processo acontece e pode acontecer novamente.
A ascensão de Trump é um exemplo de como se pode eleger um déspota em tempos atuais. Se você achar que estou forçando a barra, aviso que os designers do jogo fizeram uma expansão específica sobre ele.
Outra vantagem do jogo para uso em ambiente escolar é que ele aceita muita gente. É possível jogar com até 10 pessoas. Assim, com três jogos seria possível aplicar em uma turma de 30 pessoas. As partidas também são razoavelmente rápidas e podem caber dentro do espaço de uma ou duas aulas de ensino fundamental 2 e nível médio.
Obviamente a experiência de jogo não pode flutuar no vácuo. Um bom professor pode introduzir o assunto em aulas e usar o jogo como uma forma de aprofundar a reflexão e incentivar os alunos a discutir sobre o assunto.
Origens
Dentre as coisas legais do capitalismo atual está o financiamento coletivo, que permite o contato direto entre os promotores de uma ideia e eventuais interessados. Foi o que permitiu o desenvolvimento de Secret Hitler por Max Temkin, Mike Boxleiter e Tommy Marange, criadores do divertido Cards against Humanity. Se alguém acha que fascismo não é legal, nem para jogar, o endereço dos congressistas americanos está disponível para reclamar sobre o assunto e, quem sabe, cobrar para que eles defendam a democracia com mais competência.
Outra pérola foi o trabalho de design de Mackenzie Schubert que fez uma identidade visual em estilo anos 30, com as identidades dos jogadores parecendo documentos antigos e os fascistas nada discretamente apresentados como répteis.

Conclusão
A mecânica de dedução social do jogo é similar ao jogo de lobisomem e demonstra bem o impacto da assimetria de informação. Como um grupo pequeno e bem articulado pode dominar grupos maiores porém menos informados. Sim, os fascistas estão em menor número.
A experiência ajuda a entender a política como a arte do possível, que ela ocorre dentro de um contexto. Afinal dentro do jogo o participante está fazendo o papel de um político e os resultados dependem da sua habilidade, independente da ideologia. O jogo oferece uma oportunidade de letramento, independente da ideologia preferida. O próprio site do jogo não nega o potencial educativo, como demonstra a opção de impressão. Para que as pessoas joguem e aprendam tendo ou não dinheiro para comprar.
É muito saudável para mostrar que política é participação e não o que eu chamo de “experiência gourmet”: pessoas que acham que política é procurar alguém que represente seus valores ou simplesmente simpatize para votar na época das eleições e depois ficar choramingando que os políticos são todos iguais. O mundo é complexo, omissão também é uma decisão e quem não gosta de política vai ser governado por quem gosta.
Como dizem uma forma de se combater o nazismo e fortalecer a democracia é a educação. Uma partida e o incentivo a uma boa reflexão pode ser uma excelente forma de incentivar essa aprendizagem
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