
Depois de quase 1/4 de século de carreira como designer é possível ter uma certa perspectiva. Por um lado estava feliz em ter conseguido me manter na profissão, ainda mais em empregos razoavelmente bem pagos. Mas como dizem os budistas: a única certeza é a mudança. E foi o que me aconteceu.
Ainda me lembro quando tratava o meu portfólio como uma coisa muito preciosa, onde cada trabalho tinha seu lugar. O efeito de uma carreira que se alonga é ser possível escolher os melhores, criar categorias, como “mais relevantes”, “preferidos”, mídias ou etc. Achei que o auge seria perceber que o portfólio não era mais uma preocupação. Poder negar certos trabalhos foi outro pequeno prazer que veio com a experiência.
Carreiras e escolhas
Outra coisa que se ganha é o direito, e a responsabilidade, da escolha. Em termos de carreira há um dilema profissional a ser definido entre ser cabeça de sardinha ou rabo de baleia. Ser alguém importante num pequeno empreendimento solitário ou ser parte de um todo em algo maior. No meu caso eu havia optado por estar no rabo. Pode soar estranho, mas é a satisfação em ser parte de algo grande sem a pressão e a solidão da liderança.
Trocadilhos à parte estou em paz com isso. Acredito que certas coisas, sejam por sua complexidade ou grandeza, devem ser feitas em equipe e demandam um bom tempo para funcionar. O que significa fazer parte de uma organização maior, como uma baleia, mesmo que não se esteja no comando, como o rabo. A vida é feita de escolhas e renúncias.
Há uma certa vaidade em ser líder, mesmo que em algo pequeno. No meu caso, descobri que a minha funciona de forma diferente, não me incomoda em estar no rabo. Minhas pretensões são outras: Eu não quero estar em uma baleia, quero estar no godzilla. Mesmo que eu seja apenas uma parte maior, quero fazer parte de algo grande, poderoso e que realmente tenha algum impacto.
Os mares de sempre
Porém, há tempos que também há um certo mal-estar. Não conseguia mais emplacar aquelas boas ideias que dão propósito e alegram a carreira profissional como estar apaixonado: como o projeto do jogo, suas aplicações, escrever artigos ou os criar livros, seja como designer ou escritor. Eu propunha ideias, mas não havia muito espaço, as respostas vinham com sorrisos cansados e um certo ar de “na volta a gente compra”.
Por outro lado a demanda por publicações só aumenta. Trabalhos vão e vem, a vida de designer corporativo seguia como a de uma impressora que reclama, uma máquina de fazer coisas bonitinhas. Entra um pedido de folder para um evento, vem o texto, crio ou garimpo imagens , diagramo e entrego. Recebo briefing de livro, diagramo, criou uma capa, edito imagens e entrego. É como uma padaria, recebo insumos, asso diversos pães, entrego e repito até terminar o expediente. De vez em quando repito além do expediente. Entre meus colegas, que são pessoas legais, a percepção não parece ser muito diferente.
Me perguntava se terminaria meus dias fazendo coisas bonitas que quase ninguém lia ou diagramando publicações cujo objetivo principal é serem comprovantes de entrega de algum compromisso corporativo. Como dizia um colega: colocar botox em relatório.
Cruzando o cabo da boa esperança
Estava de férias quando recebi uma proposta de mudança para outra área. Meu envolvimento com educação já é longo e de vez em quando fazia alguns trabalhos com o pessoal de ensino a distância. Me pareceu outro ponto do rabo da baleia. Trabalho novo, abrir mão de processos de trabalho amadurecidos e testados, de resultados produzidos e confiáveis.
Desconfio que aceitei rápido demais, tanto que a minha eventual e futura chefe me pediu para pensar com calma na proposta e responder depois. Uma pessoa cuidadosa é sempre um bom sinal. Respondi no outro dia e depois das férias e mais algumas semanas de costuras corporativas conseguimos fazer minha mudança.
A fase dos cumprimentos e boas-vindas foi rápida, mas efusiva. Todo muito muito simpático, mas me perguntava quanto duraria a lua-de-mel. Algumas semanas depois tive que assumir como chefe substituto devido às férias da minha chefe. A primeira segunda-feira um tsunami de problemas batendo na minha cara e os outros 15 dias não foram mais fáceis. O primeiro choque foi perceber que eu estava fora da área operacional. Havia passado mais de uma década dentro de processos de trabalho bem-desenhados e testados. Meu papel era claro, minhas entregas definidas e eu era uma engrenagem eficiente. Isso ficou para trás.
O mar novo
Fui para a área de ensino a distância. Se existe design gráfico, também existe design instrucional, o processo de planejar a aprendizagem. Os conhecimentos em design ajudam, mas a questão vai além da interface, do estético. Eu gosto de pensar como se fosse um filme ou um jogo: O que o aluno precisa aprender? Como vamos fazer ele lidar com isso, como calibrar o desafio para que seja algo superável? Como minha chefe costuma a dizer: aprender não é um processo fácil, demanda esforço. É preciso aceitar isso para não fantasiar, focar no que é possível ensinar dentro dos recursos disponíveis e criar o resultado desejado, que é a aprendizagem.
Nesse aspecto descobri que se estou no godzilla, com certeza não é o rabo. Eu diria que estamos bem melhor localizados, podemos não ser o sopro atômico, mas eu nos colocaria perto das garras. Temos centenas de cursos e atendemos dezenas de milhares de alunos no Brasil e fora dele. Essa é outra das belezas do ensino a distância, a mediação por computador garante dados. Se organizar direitinho, e estou num lugar que faz isso, é possível mensurar muita coisa e melhorar o processo todo com a experiência.
A primeira, de muitas, tempestades
Ainda que a área nova tivesse processos bem desenhados eles são muito mais complexos que a “padaria” do design gráfico. Não havia mais briefings, eu recebia pedidos que geralmente não sabia responder e saía correndo para procurar a resposta. Havia realmente muito a aprender e minhas décadas de experiência anterior pouco ajudavam. E como um estudioso da aprendizagem engoli minha ansiedade e assumi o que não sabia para poder abrir espaço para assimilar conhecimentos novos. Semanas queimando neurônio, errando e todo dia tinha uma surpresa. Quando minha chefe voltou me dispus a conversar sobre eventuais erros no processo e a resposta foi mais leve do que eu esperava. Como toda aventura, a primeira coisa você comemora o fato de ter sobrevivido à ela.
Desenhando um novo mapa

Foi interessante perceber como eu estou desacostumado a ter autonomia. Algo que me foi oferecido, e esperado, desde o início. Meus anos em trabalhos operacionais me acostumaram a ficar comunicando, relatando e, principalmente, a agir sob ordens. A áreas de design e comunicação em ambiente corporativo costumam a ser muito operacionais e, por consequência, reativas. Resolver problemas faz parte do pacote, mas definir rumos é muito diferente. Autonomia, mesmo que limitada ainda me soa como um esporte radical que preciso praticar.
Isso também abriu espaço para lidar com algo traumático para um designer, errar. Somos condicionados a evitar erro tanto quanto possível. Um designer gráfico comete tantos erros quando a tiragem do trabalho e garanto que mais de 5000 erros é muita coisa. Mas aprender significa cometer erros, assumi-los, lidar com suas consequências e seguir em frente. E estar num ambiente que assume esse risco e evolui é algo bom.
Um prazer recuperado foi o trabalho em equipe. Minha chefe é esperta e percebeu há tempos que uma boa seleção resolve a maioria dos problemas. Meus colegas são pessoas normais, mas são pessoas confiáveis, generosas, fazem o que podem para as coisas andarem e não deixar os outros em apuros. Eu contribuo com ideias estranhas, outra é muito meticulosa, outra é flexível e tem longa experiência em TI, outro é muito inteligente e outra é excelente negociadora e consegue trafegar entre o operacional, tático e estratégico com maestria. Não somos perfeitos, mas fazer parte de uma boa equipe é participar de um todo que é maior que a soma das partes. É um desses pequenos milagres cotidianos que precisa ser mais valorizado. Segundo o Hariri foi essa capacidade de cooperar que nos tirou das cavernas.
Também redescobri que reconhecimento é uma coisa legal. Não aquele óbvio do tapinha nas costas e do elogio. Esse novo reconhecimento é mais discreto e profundo. Aquele em que se percebe que suas propostas são incorporadas e mudam a direção das coisas. Esse reconhecimento abriu espaço para ideias que tenho há tempos, eram vistas como criativas e interessantes, mas nunca tiveram espaço, agora começam a florescer. Eu não faço parte de um grupo que aceita as ideias, mas as incorpora. Assim, recuperei minha noção de propósito. Quem precisa do tapinha nas contas tendo isso?
Alguns talvez imaginem que por não estar mais “fazendo artes” não faço mais uso de criatividade, que acredito ser um dos meus diferenciais profissionais. Mas um dos bônus do reconhecimento foi justamente ter espaço e incentivo para ter ideias. A gestão tem muito espaço para inovação e estar num setor que dá espaço para as pessoas pensarem e incorpora ideias que se mostrem interessantes são excelentes incentivos.
Conclusão
Sair do design foi o fim de um longo processo, a mudança para a área de educação. Esse processo terminou nesse mar novo. Para lidar com o desafio tenho tentado manter a mentalidade de aprendiz: aceitar o que não sei e aprender sempre que possível. Aceitar o que não se sabe é a base do aprendizado, é isso que abre espaço para o novo. Em termos de sentimento, apesar de todo o esforço e estresse que tenho sentido, creio que o mais claro é gratidão. Acordo torcendo para valer a aposta que foi feita em mim. Fico feliz de fazer parte do grupo em que estou, agradeço pelo espaço que eu tenho e feliz com a compreensão dos meus colegas, mesmo que sejamos tão diferentes. O que me parece ser um bom sinal.
O que posso sugerir é sempre pensar onde se deseja estar. Sei que lidar com o dia a dia já é trabalho suficiente, mas é preciso separar um tempo para pensar nas trajetórias que adotamos. Sempre fui uma pessoa de inovações incrementais, mas posso dizer que fiquei satisfeito com essa mudança mais radical. O precedente favorável abre ainda mais possibilidades.
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