RPG e Crianças: 5 marcos cruzados ou a superar


Os meses se passaram e muitas aventuras ocorreram, nos episódios anteriores contei sobre minha experiências narrando jogos de RPG para um grupo de alunos de fundamental I. Tinha alguns objetivos que quero cumprir, como incentivar a leitura, melhorar o entendimento de probabilidade e um pouco de exercício de matemática, mas estão longe de ser os únicos. Nesse meio tempo observei alguns marcos para indicar o cumprimento desses objetivos. Alguns eu que consegui atravessar e outros estão em andamento.

1- Criar um grupo de jogadores viável

Um risco que eu aceitei desde o início é que eu poderia voltar a ler RPG, reaprender a arte de mestrar, montar personagens junto com os jogadores, criar uma história, acertar as agendas e eles achassem chato e desistissem na primeira ou segunda sessão. No entanto, o interesse dos jogadores não apenas se manteve, mas a demanda para jogar RPG aumentou à medida que eles comentavam com os colegas de turma. O resultado é que tive que criar um segundo grupo e agora já estou com uns nove jogadores em dois grupos diferentes e ainda tive a dura tarefa de deixar gente de fora. Marco ultrapassado com louvor

imagens de várias princesas da disney participando de uma partida de RPG
fonte: Rede RPG

2 – Incluir meninas

Colocar meninas para jogar também é um objetivo. Os benefícios e a diversão são muito grandes para deixar um gênero inteiro de fora, além de outras razões apresentadas na carta aberta do Grupo de Mulheres RPGistas. No meu caso, graças a propaganda dos que já estão jogando, duas das colegas deles se interessaram. Por questões de agenda eu acabei com apenas uma menina jogando. O que importa é que ela está se divertindo, é inteligente e está bem entrosada. Agora é esperar que seu testemunho se espalhe entra as colegas. Resultados ainda são incertos, mas certos processos tem um tempo de maturação.

3 – Superar a mentalidade videogame

Quando ocorre o combate no jogo de RPG cada jogador tem seu momento de agir, de acordo com a rolagem de dados de iniciativa, quem tiver os melhores resultados joga primeiro. Nesses momentos, reparei uma certa tendência nos jogadores com mais contato com internet e jogos eletrônicos que chame de “mentalidade videogame”: eles se envolviam apenas quando era a vez deles e se distraíam na vez dos outros. O resultado era que a sala mergulhava um caos de conversas paralelas, minha mobília corria risco (alguns deles resolviam passar o tempo “livre” jogando pingue-pongue com qualquer objeto que encontrassem) e a experiência de quem estava no seu momento de atuar era diminuída porque o jogador e eu éramos distraídos tenho um certo apego por minha mobília, me julguem.

A solução foi salpicar informações essenciais nas jogadas de todos os jogadores, eventualmente ferrando criando problemas para alguém por fazer uma jogada prejudicada por não prestar a atenção. Em alguns momentos tenho dado mais ênfase ao aspecto exploração e interação social entre personagens que o combate em si. Gêneros como o investigativo, o suspense ou mesmo terror podem atrair mais interesse que o rolar de dados.

Meu maior golpe mentalidade foi em uma sessão em que preparei para que eles tomassem uma decisão bem contra-intuitiva para um gamer. Eles teriam que evitar o combate final em vez de encarar o que parecia ser o “chefão da fase”. Eu havia escolhido um adversário que certamente ia acabar com eles se eles continuassem apenas seguindo o esquema “adversários são para destruir”. Do grupos de cinco, um simplesmente aceitou a morte e se preparou para a última batalha. O que eu achei excelente em termos de atuar o personagem. Os outros três ficaram se olhando sem saber o que fazer e apenas um se dispôs a pensar fora da caixa e encontrou a solução para evitar uma batalha que não venceriam. Eu achei o final belíssimo e estou curioso para observar o efeito.

4 – Melhorar como narrador

Conduzir uma história é um processo, especialmente para pre-adolescentes acostumados ao ritmo de videogame. Apesar deles sempre se dizerem satisfeitos observei que eu tinha a melhorar. Minha esposa me criticou uma vez porque eu estava interrompendo um dos jogadores quando ele ia falar suas ações. Eu queria manter o ritmo do jogo ágil, mas entendi que cada um tem seu ritmo de construção de raciocínio e isso deve ser respeitado. Respeitar isso rendeu alguns momentos divertidos, como jogadores ansiosos fazendo interpretações do arco da velha, o que me rende opções de mudança de história que podem ser úteis.

Como um jogo colaborativo o RPG demanda cuidados. Um grande amigo meu e muito experiente em RPG observou que existe tendência nos jogos colaborativos de surgir um “líder” que insiste em comandar o jogo dos outros. O que arrisca toda a experiência para os jogadores, especialmente se surgir um mais assertivo. Observei isso na época do meu projeto com o jogo e equilibrei criando interesses coletivos e particulares.

Em termos de ações para equilibrar esses interesses algumas das frases que eu mais digo durante as sessões são:

  • “Deixem ele decidir, a ação é do personagem dele e a decisão também”
  • “[Fulano] o que você decide? (essa pergunta demandou insistência em vários momentos)

Essas frases descrevem bem um dos fios de navalha em que preciso caminhar durante a narração: Intervir demais reduz a liberdade de interação entre os jogadores e intervir de menos reduz os jogadores mais indecisos ou introvertidos ao papel de figurantes ou capangas dos mais assertivos. Não dá para ter um só protagonista, ou mesmo alguns preferidos nesse papel e outros como figurantes. Alguns deles me falaram que uma das professoras fazia isso na escola: dava atenção para os seus preferidos. Eles odiavam a matéria por isso.

Minha solução foi uma abordagem similar à das histórias de Star Trek: A Nova Geração. Dar os momentos para cada um brilhar. Na série, isso era previsto, no meu caso, isso tem que ser um tanto improvisado: eu via a história dos jogos anteriores (sim, estou escrevendo a história deles) e observava quem tinha aparecido menos. Assim, eu previa as situações que dessem chance para um ou outro aparecer e fazer diferença na história. Meu trabalho como mestre de jogo é exatamente esse.

Como bem descrito por Scalzi no livro Redshirts, o problema não é o personagem morrer, mas sua morte ser algo besta, sem propósito e feita de forma preguiçosa e mal conectada apenas para mostrar que ação tem riscos. Inclusive, um dos meus esforços, e de todo roteirista de história de ação, é fazê-los achar que estão à beira da morte ao menos uma vez por jogo.

Por outro lado, um jogo de RPG não é um roteiro fixo. Se eu quiser ter controle demais da narração posso derrubar a diversão. Tenho que dar o espaço e, ao mesmo tempo, estar preparado para a reação deles. Assim, eu uso minhas observações de comportamento dos jogadores como uma guia para saber quem preciso refrear e quem preciso incentivar. Se o jogador escolhido para brilhar naquele dia estiver num bom dia, ótimo. Caso contrário, tenho que ficar atento às oportunidades que surgirem. Não posso me dar ao luxo de criar uma sessão de jogo inteira em torno de um personagem, mas o ideal é que cada um tenha seu momento. O que torna a sessão muito divertida para mim: mesmo que eu crie o cenário, nunca sei como a história vai correr exatamente. O jogo de RPG é a prova perfeita do ditado “só improvisa quem planeja”.

5 – Me tornar desnecessário

Ainda que eu também esteja me divertindo, vou considerar um fracasso se não surgirem narradores entre os próprios jogadores. Sei que alguns compraram os livros e têm diversas ideias para novos personagens. Mas surgir alguém disposto a criar e conduzir suas próprias histórias significa que eles fecharam o ciclo e podem seguir sem mim, considero esse último marco um indicador de sucesso importante. Já identifiquei dois com bom potencial, mas só vou me dar por satisfeito quando surgir um novo grupo entre eles independente da minha participação.

Conclusão

Dos meus cinco marcos apresentados acima, acredito ter realmente superado apenas o primeiro. O número 4 teve melhoras mas é um desses objetivos constantes, sempre se pode melhorar. Como os outros objetivos estão se desenvolvendo bem e os benefícios ainda compensam os esforços, os jogos continuam.

Deixe um comentário

Blog no WordPress.com.

Acima ↑