Farras fantásticas e o potencial paradidático


Dentre as leituras de férias estou lendo a antologia de contos Farras Fantásticas, da Corvus Editora. O livro inclui 18 autores que tratam de temas ligados as festas populares e a diversidade da região nordeste do país e passam pelos gêneros de fantasia, ficção científica e terror, com a proposta de incentivar a leitura da produção nacional.

Editado por Ian Fraser, Ricardo Santos e João Mendes o projeto do livro bancado por meio do Catarse e demonstra bem o potencial do gênero. A meta inicial de arrecadar quase 18 mil reais para bancar a produção do livro foi ultrapassada após uma campanha de marketing bem montada onde foram obtidos mais de 35 mil reais ao final da campanha. Inclusive, algumas das opções de brindes ofereciam outros livros de autores locais. No entantdo, acredito que além de ser uma boa leitura e um incentivo a produção literária brasileira, o projeto tem um excelente potencial como material paradidático em escolas.

Didáticos e paradidáticos

O termo paradidático é uma invenção do mercado editorial brasileiro. De um lado temos o livro didático, que serve como base para a organização das aulas pelo professor além de informar, estruturar, organizar o processo de aprendizagem e oferecer exercícios para fixar o conteúdo. Por outro lado, o livro paradidático serve para complementar, abordar assuntos com mais profundidade ou despertar o interesse sobre certos tópicos, mas sem a preocupação de organizar a aprendizagem ou oferecer exercícios, como os livros didáticos. Geralmente abordam o que se chamam de temas tranversais, aqueles que passam por diversas matérias.

Sou suspeito para falar desse tipo de material educacional. Afinal, é o meu preferido e considero excelente para divulgação científica, tanto que já trabalhei com ele em diversos formatos como: jogo de tabuleiro sobre Cerrado; livro sobre macaúba e agroenergia; livro sobre insetos aquáticos e livro sobre fogo. O que considero interessante no paradidático é sua capacidade incentivar o interesse por determinados assuntos. O que eu chamo de âncora emocional positiva: ao oferecer uma experiência agradável, como uma boa leitura, é criada uma referência emocional favorável que pode tornar as pessoas mais amigáveis ao conteúdo abordado. É por isso que bons livros, jogos ou mesmo passeios em museus ou parques naturais podem ser boas ferramentas educacionais.

As farras paradidáticas

Como a própria editora Corvus comentou, o projeto foi feito por nordestinos e sobre o nordeste, mas se coloca como a semente para desenvolvimentos futuros. O livro me lembrou muito a antiga coleção Para Gostar de Ler da editora Ática. Iniciada em 1977 e que fez parte da minha vida nos anos 80 e 90. Como o próprio nome diz, ela cumpriu muito bem essa função de incentivar o ato de ler em mim e em milhares de outras pessoas, tanto que durou até 2013.

Os Autores. Fonte: Mais QI Nerds

No caso, ao apresentar textos curtos, agradáveis, coloquiais e variados, Farras Fantástica atende essa função de incentivo à leitura. Ao mesmo tempo que serve para mostrar que a região nordeste e o próprio Brasil estão longe de ser um monolito onde tudo é igual. É possível ver como as festas tradicionais mudam de um lugar para outro, vários contos falam sobre carnaval ou são joão. Eu, por exemplo, sequer sabia da existência de bacamarteiros, caretas e outras figuras típicas.

Os contos também ilustram as diferenças entre o Brasil urbano e rural. O que seria útil em aulas de artes ou geografia. Portanto, o livro poderia ser um bom eixo para temas transversais. Levando em conta alguns palavrões ocasionais, algo que muda de acordo com a região, eu sugiro como opção para o ensino fundamental 2 em diante.

Eu achei interesssante que além das festas populares, o aspectos família e diversidade são abordados em diversos contos. A família é mostrada como uma argamassa que une diversos personagens e mostrando pessoas com diferentes orientações sexuais lidando com questões familiares. Considero isso importante para mostrar que, ao contrário do espantalho retórico levantado alguns conservadores, a diversidade não é contra a ideia de família, mas justamente a favor de todo o tipo de família.

A própria Corvus considera o projeto como um piloto, que parece ter cumprido sua função pioneira. Imagino que haja espaço para se fazer novos exemplares ou mesmo versões para outras regiões do país com autores locais, como as pouco conhecidas Norte e Centro-Oeste. Uma coleção desse tipo seria excelente para ajudar os alunos a compreender a grandeza e diversidade do país em que vivem.

Conclusão

Dá um certo alívio ler sobre esse Brasil que se diverte, sofre, cresce e se aglomera (livro pré pandemia) mas principalmente desse povo que, sem negar seus problemas, gosta e aceita ser quem é. Sem a eterna dor de cotovelo de não ser americano ou europeu. Um país que assume seus defeitos, não esquece seu passado mas encara os desafios do presente, como a diversidade. Os contos variam, mas a obra está longe de ser uma visão idealizada ou ingênua, como demonstrado pelas distopias ao longo do livro. Ainda assim, a meu ver, o livro cumpre seu papel em oferecer um vislumbre e inspiração do povo que podemos ser.

Referências

2 comentários em “Farras fantásticas e o potencial paradidático

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  1. Oi, Renato. Sou Ricardo Santos, um dos organizadores do Farras Fantásticas. Cara, que resenha sensacional. Você falou com muita propriedade sobre os temas abordados pelo livro. Percebe-se que você curtiu, mas de maneira crítica. Valeu mesmo.

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    1. Obrigado Ricardo. Como o Yuval Hariri disse uma vez: o que une um povo é a crença compartilhada nas mesmas histórias, inclusive as ficções. Nesse aspecto eu parabenizo você todos os participantes por produzirem histórias melhores para unir esse povo. O patriotismo que presta é esse que vocês fizeram no livro.

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