Root: jogos de guerra, bichos fofinhos e o que eles podem ensinar


Introdução

Alguns dias atrás voltei a jogar com alguns velhos amigos. Além da oportunidade para colocar a conversa em dia e ver que certas amizades independem da convivência aproveitei para mostrar meu jogo de Cerrado, o tema do projeto, e fechar um ciclo. Afinal, aquelas foram algumas das pessoas que despertaram meu interesse por jogos. Já era hora de finalmente dar um retorno do que eu aprendi com eles.

A outra coisa legal foi ter uma noção do “estado da arte” em termos de jogos de tabuleiro comerciais e eles continuam antenados  nas novidades. Nessa reunião,  eu fui apresentado ao Root, um jogo criado por Cole Wehrle, lançado em 2019 pela Leder Games e editado no Brasil pela meeplebr. O jogo tem uma história fofinha, com floresta e bichinhos, pelo menos na aparência,. Porém na verdade esse um jogo de guerra. Segue a minha análise e, para variar, um pouco de imaginação sobre o seu uso educacional.

O jogo de guerra

(Se já conhece esses gênero fique à vontade para pular para o próximo tópico)

Essencialmente, o Wargame ou Jogo de Guerra é um jogo que simula um conflito, podendo abordar tática ou estratégia, pode ser uma batalha específica ou uma guerra inteira. Sua origem é muito antiga, há quem considere que esse gênero começou desde que o primeiro plano de batalha foi desenhado e discutido, isso já seria uma forma crua de wargame. O Xadrez é um exemplo e o Go dos chinese é outro, simulações simples que servem para ensinar aspectos específicos de estratégia.

No século XIX surgiram novas versões destinada ao treinamento militar. Os alemães adoravam e desenvolveram versões muito complexas. Em 1824 o tenente prussiano Von Reisswitz adaptou um sistema de jogo criado por seu pai e publicou seus jogos como Instruções sobre representação de manobras táticas sob a forma de um jogo de guerra, onde esses jogos foram denominados Kriegspiel. Como esse tipo de jogo era visto como um meio de treinamento, o detalhamento e fidelidade eram considerados prioritários. O que rendeu jogos complexos, detalhados, cadernos de regras compridos e com partidas longas. Tais jogos se tornaram populares entre militares mundo afora não apenas como forma de treinamento, mas também para desenvolver, testar e refinar operações militares. Outro grupo de interesse foi o dos historiadores, especialmente como ferramenta para observar e entender batalhas históricas.

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Esse uso “sério” continua válido até hoje, como nesse exemplo da US Naval Postgraduate School. fonte: wikipedia

Logo surgiu uma divisão entre as versões de wargame: as “rígidas”  para treinamento e com foco profissional e; as “livres”, mais voltadas para o entretenimento, sacrificando um pouco do realismo e detalhamento em prol da facilidade de jogo. Porém, até mesmo as versões livres podiam parecer bem complicadas para leigos. Isso tornou essa diversão um tanto exigente, destinada a um público  restrito, sejam as versões de jogo de tabuleiro ou de computador.

Porém nos últimos tempos me parece que a indústria de jogos de tabuleiro está fazendo um esforço em aumentar seu público trabalhando com temas diferentes das guerras tradicionais e focando num público mais leigo, com histórias mais simpáticas, regras mais simples e abordando temas mais variados como fantasia e ficção científica. É nesse esforço que acredito que se encaixa o Root e sua temática de bichinhos da floresta.

Floresta, bichinhos e emboscadas

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No jogo a Marqueza de Cat e seu exército de gatos invadiram a floresta para saquear seus recursos, especialmente a madeira. Eles conquistaram boa parte da floresta, que até então era comandada pela tradicional nobreza dos pássaros, obrigada a lutar para retomar o que considera seus domínios por direito. Em meio a esse conflito estão os outros animais, como raposas, coelhos e ratos, que são explorados como mão de obra até o surgimento de uma quarta facção, a aliança. Essa primeiro precisa espalhar a sua causa para fomentar uma revolução. Por fim, há o vagabundo, um guaxinim malandro que percorre a floresta, explora antigas e enormes ruínas e pode se relacionar com todas as facções para sobreviver em meio ao conflito. O povo que criou as ruínas é desconhecidos, mistério que rende um leve clima de Hora de Aventura.

O jogo envolve diversos elementos típicos dos wargames. O detalhe do território ser centrado em clareiras no meio da floresta é interessante, lembra a guerra naval ou no deserto. Onde o que importa é conquistar pontos estratégicos, como os oásis do deserto ou ilhas no mar, em vez de grandes extensões de território. Isso simplifica um pouco o jogo e permite que os jogadores se concentrem no controle em suas clareiras e no gerenciamento de recursos. Apenas nas clareiras é possível cada facção criar construir prédios para obter mais recursos, como madeiras ou novos soldados. Essa restrição de espaço serve para aumentar a probabilidade de conflito dentro do jogo. É preciso conquistar as clareiras dentro da floresta (controle de território), explorar a região, gerir recursos, construir de forma eficiente e ainda por cima impedir a evolução de seus adversários, que tentarão fazer o mesmo com você.

Só isso já rende muitas possibilidades, mas o jogo tem outro fator: esse é um jogo  assimétrico. Significa que as facções tem capacidades e objetivos diferentes. Ainda que seja um jogo competitivo, ganha o primeiro jogador que fizer 30 pontos no placar, cada jogador tem objetivos e modos muito diferentes de marcar pontos.

As facções

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Gato e guaxinim se encontram no clareira dos coelhos

Os gatos tem o maior exército que está espalhado pela floresta, podem recrutar mais soldados-gatos e construir serrarias para coletar madeira.

Por outro lado os pássaros são uma facção antiga e militarista, com soldados fortes mas muito burocrática. A facção é obrigada a seguir o “decreto”: uma série de ordens que vai se tornando mais complexa a medida que o jogo avança. Caso algum de seus elementos não seja cumprido o líder cai em desgraça e a facção entra em desarranjo até a entrada de um novo líder que vai criar um novo decreto. Porém a medida que o jogo avança, mas ordens são acrescentadas ao decreto. O que torna a desgraça mais provável à medida que o jogo avança,

A aliança começa sem soldados e precisa espalhar suas bases entre o povo para então criar sua revolta. Quando passa a ter soldados,  territórios e a necessidade de se expandir como as outras.

Por fim, o guaxinim que é apenas um no jogo: sem prédios para construir ou soldados para comandar. Ele tem pouco poder de combate e seus recursos são limitados ao quanto puder carregar. Porém, ele é o único capaz de transitar e se esconder no meio da floresta, independente de caminhos ou clareiras, pode obter recursos nas ruínas e fazer pequenas aventuras com os recursos que conseguir, como enfrentar um urso ou fazer um discurso, e assim marcar mais pontos no placar.

Minha experiência

IMG_7373Como éramos cinco, meu amigo que trouxe o jogo se dispôs a explicar as regras. Na prática ele acabou funcionando como um narrador, o que deixou o jogo muito mais divertido e foi aceito de forma bem natural, já que todos na mesa eram experientes jogadores de RPG. Ele é uma pessoa muito inteligente e a habilidade dele em explicar regras de forma clara e divertida mostra bem a importância de alguém habilidoso para fazer esse papel de facilitador numa primeira partida.

Como esperado ,logo no início da partida os gatos e os pássaros se engalfinharam numa clareira. Enquanto os pássaros rapidamente reconquistavam territórios, os gatos construíam serrarias para obter mais recursos e juntavam forças para enfrentar os pássaros. A aliança procurava clareiras com poucos soldados de qualquer facção para juntar simpatizantes. Já o guaxinim, que era eu, tentava ganhar simpatia de qualquer facção, isso dá pontos no placar, além de fazer algumas aventuras e vender cartas que dão vantagens para as facções..

No início os pássaros começaram a se expandir os gatos tentaram contê-los de forma cautelosa. Até que o líder dos pássaros caiu em desgraça, a facção parou se de expandir e perdeu vários pontos. O que foi agravado por uma série de revoltas da aliança que devastou o coração do território dos pássaros. Segundo nosso narrador, uma revolta de raposas instigada pela aliança devastou os ninhos dos pássaros, que já estavam enfraquecidos pela desgraça de seu líder, o que os fez desabarem no placar. Nesse meio, tempo o Guaxinim vendeu cartas com recursos, como barricadas e emboscadas. Assim ele acabou benquisto por todas as facções, inclusive a recém-iniciada aliança. Cheguei ao segundo lugar no placar sem um luta sequer. Meus amigos já estavam me chamando de “O senhor das armas” e poderia ter ganho o jogo se a aliança não chegasse aos 30 pontos primeiro, por mérito do seu jogador. A grande revolta das raposas foi um ponto de inflexão na história. Ainda assim fiquei saí satisfeito.

Sobre o potencial educacional

Um jogo assimétrico é algo mais complicado para entender porque não se pode usar as ações de outros jogador como referência. Eles tem objetivos, capacidades e fraquezas diferentes. A quantidade de regras torna o início do jogo um tanto demorado. Nesse aspecto é interessante existirem dois livro de regras, um tradicional e outro que trabalha com um índice e casos de uso chamado “regras de floresta”.  Assim, há dois caminhos diferentes para se aprender. Outro aspecto útil da história fofinha é que todas as regras estão contextualizadas como parte da história. Se o jogador “entrar” na história fica muito mais fácil entender as regras.

O aprendizado mais básico vem do exercício das diversas habilidades requeridas nesse gênero de jogo:

  • gestão de recursos (soldados, construções e cartas);
  • controle do território (clareiras e os caminhos);
  • diplomacia (relação com os outros jogadores).

A experiência com o guaxinim vagabundo foi divertida e instrutiva. Atuar como ele é uma aula sobre soft power um conceito interessante nas relações internacionais em que a influência é obtida por cultura ou diplomacia em contraponto aos tradicionais poderes econômico, como demonstrado pelos gatos, ou o tradicional poder militar, representado pelos pássaros.

Outra vantagem de ter gente inteligente na mesa, entre elas um professor de história, foi discutir narrativa que ia se formando à medida que a partida se desenvolvia. Começamos a fazer um paralelo com a primeira guerra mundial, no front oriental. Onde os russos brancos (pássaros) estão em guerra contra os alemães (gatos) para então serem sacudidos pela revolução comunista (aliança). Certamente também é possível fazer paralelos com a revolução francesa ou outro momento histórico. Ao colocar o jogador no papel da tomar decisões é possível mostrar o funcionamento de diversas dinâmicas, como geopolítica, economia, estratégia militar etc. Um jogo como esse vale para estrategistas militares, mas também para sociólogos, economistas, diplomatas ou qualquer um que queira entender mais sobre esses assuntos, sem esquecer as áreas de gestão e gerência.

Outra opção de atividade escolar seria colocar cada jogador para narrar como foi a guerra da floresta em seus diferentes pontos de vista renderia um excelente exercício de redação ou mesmo de história. Essa experiência também serve para mostrar como o mundo pode ser complexo e como a noção de sucesso pode ser variada. Seria uma forma de incentivar e tolerância, mesmo que seja um cenário de guerra.

Conclusão

Pessoalmente, acho a idade mínima de 8 anos bem otimista ou um belo tributo ao sistema de ensino europeu. Acho que pessoas mais velhas tem mais chance de abstrair e obter mais aprendizado da experiência. A estrutura assimétrica cria  oportunidade para diversas partidas, observando a diferença entre as facções. Ainda que o foco não esteja nos detalhes do combate, mas na gestão e história simpática, é um bom exemplo de hard fun.  Root oferece uma boa porta de entrada para o gênero dos wargames e eu pretendo jogar mais vezes.

Atualização: A idade recomendada que usei como referência inicial foi a que estava no site da amazon (acesso em 30/09/2019). No site da editora brasileira,  a meeplebr, a idade está nos 14 anos em diante. O que me parece bem mais razoável. Thelmo, obrigado pela dica!

Referências

Edwards, O. REVIEW: Root-as-a-Wargame, from Brit Wargames Reviews. Boardgamegeek. Disponível em https://boardgamegeek.com/thread/2158920/review-root-wargame-brit-wargames-reviews

meeplejogos. Root. Disponível em: https://www.lojameeplebrjogos.com.br/root

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