Uma das belezas de viver o suficiente para amadurecer (um pouco) é perceber que nossas ideias e valores são parte do que somos, mas que a parte não define o todo. Já passei por diversas fases em relação ao carnaval: seja a de assistir a desfiles, simplesmente detestar, aproveitar para viajar, dormir e qualquer outra coisa.
O carnaval por aí
Tem quem goste do carnaval imponente e luxuoso das escolas de samba, que de fato é um espetáculo belíssimo. Outros se divertem com as orgias suntuosas dos camarotes ou dos caros blocos de abadás. Também existe o caos, intenso, embriagado, furioso e perigoso do carnaval de rua. Como todo evento enorme num país continental, o carnaval é bem diverso.
Dizem que ele existe para nos aliviar da tristeza cotidiana, mas também pode ser uma poderosa afirmação da vida e da alegria frente à tristeza e à morte. O livro O Carnaval da Guerra e da Gripe, de Ruy Castro, conta sobre o Rio de Janeiro do início do século. Dos ecos da Primeira Guerra Mundial, passando pelos horrores da epidemia da gripe espanhola, até o mais intenso carnaval do início do século, que influenciou muito o formato de carnaval que conhecemos hoje. Outra referência que eu gosto é a história em quadrinhos O Senhor da Dança que fala sobre um “Natal” antigo e pré-cristão da Inglaterra que lembra muito similar à nossa festa do Rei Momo.
O meu carnaval
Já olhei com condescendência para as pessoas fantasiadas e embriagadas se apertando em multidões enquanto assistia do conforto de casa. Também já percorri alguns milhares de quilômetros dentro do carro para uma praia. Da qual desfrutei uns poucos dias de areia para voltar os mesmos milhares quilômetros e asfalto e voltar para o trabalho exausto. Não faltaram experimentos.
A atual relação com o carnaval veio o primeiro filho pequeno. Do pai interessado em oferecer estímulos diferentes, curioso com a reação dele aos sons e cores. Foi nesse experimento que descobri os blocos de rua infantis.
Os idealizadores dos bloquinhos que eu gosto são pessoas espertas: desenvolveram meios de conseguir aproveitar o carnaval sem atrair os seus problemas. Blocos populares quando ficam bons geralmente atraem mais gente, crescem demais e logo aparece gente querendo briga, ladrões, vandalismo e, eventualmente, a polícia precisa acabar com tudo, de bom e de ruim.
A solução das pessoas que pensam nesses bloquinhos envolve poesias liberadas na rede pouco antes da saída do bloco. As poesias descrevem o local do bloco na forma de enigma. Os horários são aqueles que atendem aqueles que tem filho. Se esse já está acordado, os pais certamente vão estar. Os blocos são nas áreas residenciais e se mantém em movimento, assim o eventual incomodo para quem mora é reduzido. Significa que é algo sem riscos e ninguém é roubado ou arranja briga nesses locais? Não, esses riscos são apenas reduzidos. Mas para desfrutar das coisas da vida, geralmente é preciso correr algum risco. Como disse o Will Smith em uma entrevista: muito da felicidade está escondido depois que você assume o risco, aceita o medo e avança.
A diversão dos meus filhos é proporcional à quantidade de espuma em spray e confetes que eles possam jogar nos outros. Se terminar algum desses itens, eles automaticamente perguntam quando vamos embora. Eu detesto espuma, mas entendo como um subproduto inevitável do processo carnavalesco. Tanto que o amor à família me leva a, eventualmente, participar de alguma guerrinha com eles. Ainda que olhe agradecido e entretido quando eles conseguem fazer isso entre os amigos.
A música dos blocos infantis geralmente é feita por bandas pequenas com instrumentos de sopro e percussão. Feita na mão e no pulmão, sem caixas de som como faziam os nossos ancestrais. Tem menos potência, é preciso ficar mais perto da banda, mas isso é parte da experiência. Tem algo quase maternal numa bandinha pequena
Dentre as minhas diversões está simplesmente seguir o bloco e decifrar fantasias. É como se dissolver na multidão, a individualidade e seus problemas desaparecem por um curto tempo. É se afastar um pouco do cabresto da produtividade, da obrigação racional de fazer o correto e moral.
Outra das diversões é observar a criatividade e mistério em cada fantasia. Tem gente que certamente passou horas se arrumando e outros que pegaram uma sobra do armário. O carnaval é aquele momento para usar aquela roupa que você nunca teria coragem de vestir fora de casa.
A festa também é um meio de espalhar ideias “perigosas” de protestar por meio da ironia e do sarcasmo. A crítica social seja nos adereços ou letras de samba perduram ao longo dos anos. Dentre os casos mais focados e diretos, a forma como os artistas do Baiana System lidaram com a violência da polícia em Salvador ilustra um belo exemplo. O carnaval sempre atraiu um certo desprezo dos conservadores, talvez por sua inversão em colocar visível o que os conservadores geralmente preferem praticar escondidos. Às vezes você define a escolha por uma opção pelo que dizem os seus detratores.
É escapismo, uma euforia, pão e circo, ópio do povo para se distrair da realidade opressora? Provavelmente, mas esse papel também pode ser feito pelo cinema, igreja e redes sociais. Há meios de alienação para todos os gostos.
Conclusão
Enfim, minha atual versão se diverte com pequenos blocos de carnaval, uma pequena pecinha nessa imensa festa popular. A ironia é que o interesse dos meus filhos pela festa vai minguando à medida que a adolescência desponta. Eles já preferem ficar em casa vendo filme.
Eu vou deixando, até porque já vi esse filme, em primeira mão.


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