Desfiando o conflito da Ucrania sob 3 perspectivas


Considerando que a bola da vez em fevereiro de 2022 é o conflito da Ucrânia. O cientista político Guilherme Casarões, em um esforço para enriquecer o debate sobre o conflito, escreveu um fio analisando as decisões do governo russo sob a ótica de três abordagens teóricas das Relações Internacionais (RI). Todas as imagens vieram do fio original do professor Guilherme Casarões.

Como ele explicou, a escolha dessas três abordagens é necessária porque não existe uma teoria definitiva de RI, o que temos são várias vertentes que tentam explicar a complexidade do mundo e que, em suas limitações ajudam a entender, descrever e, com uma certa dose de sorte, prever as relações mundiais. Lembrando que conceitos diferentes para entender o mundo resultam em percepções e soluções distintas. Esses conceitos buscam explicar o mundo depois da guerra fria. Durante esse período suponho o grande eixo entre as duas potências era a questão ideológica, o que mudou a partir dos anos 90.

1- Realismo

Essa é a mais conhecida e enxerga um sistema internacional feito de Estados em permanente luta por poder e influência. Em um mundo dominado pela lei do mais forte, os estados lutam acumular poder e a mera busca por segurança causa insegurança nos outros países. A consequência é o conflito eventualmente, algum equilíbrio de poder, mesmo que seja um equilíbrio “manda quem pode obedece quem tem juízo”. A paz fora de algum equilíbrio de poder seria improvável. Assim, o foco está no poder dos estados em influenciar e evitar ou aceitar influências dos outros.

Nessa perspectiva, os EUA são um excelente exemplo: um país hegemônico que por décadas expandiu sua influência pelo mundo. Já a Rússia é um país que se sente inseguro devido a influência americana e tenta limitar essa influência em áreas que considera sensiveis. Sob essa perspectiva, o objetivo russo é manter a Ucrânia sob sua influência e barrar a expansão dos EUA e seus aliados a.k.a ocidente. Pode ser injusto com o direito de escolha de boa parte da população ucraniana, mas mantém um equilíbrio e, por consequência a estabilidade da região. Como referência, o autor mostrou um video de um conhecido defensor do realismo que afirma que a atual instabilidade na região é justamente consequência das ações dos países ocidentais.

2- Liberalismo

Essa é uma abordagem mais otimista que a realista. Existem diversas vertentes liberais, bem ao gosto do liberalismo, mas em geral essas vertebtes consideram que o avanço da democracia, do direito internacional e do livre comércio são fontes de paz e prosperidade para mundo. Percebem o mundo não apenas pelos estados, mas como um sistema composto por múltiplas redes interconectadas que envolvem estados, empresas, ONGs, grupos transnacionais, sociedades e indivíduos. O seu foco me parece estar nas liberdades e na autodeterminação dos povos.

Seu auge foi no fim da Guerra Fria, com a aceleração do capitalismo, globalização e expansão da democracia liberal. Os liberais acreditavam que as ditaduras seriam exceções anacrônicas que desapareceriam com o tempo e a democracia liberal seria o regime definitivo. A guerra seria ruim para os negócios num mundo altamente conectado. Creio que a ideia de “Fim da História” do Francis Fukuyama é um bom exemplo.

No entanto, desde a crise de 2008 o otimismo liberal nublou. A expansão da democracia estagnou, a renda se concentrou, empregos rarearam e movimentos nacionalistas surgiram em resposta aos decontentamentos políticos e econômicos com a globalização. O enfraquecimento dos acordos multilaterais, como o Brexit, e o desprezo pela ONU são sintomas desse descontentamento.

Sob essa visão, Putin, ao invadir a Ucrânia age como um ditador nacionalista anacrônico que tenta subverter os pilares da democracia liberal, da globalização e do sistema internacional. Detalhe, não muito diferente de Bush filho ao invadir o Iraque sem aval da ONU em 2003. Putin está enfrentando as democracias liberais para expandir seu próprio modelo na Ucrânia. O qual pode ser melhor entendido pela próxima abordagem.

3- Construtivismo

Essa abordagem foca nas identidades nacionais e considera que os povos constroem narrativas sobre si e outros povos. Assim, as relações mundiais podem ser entendidas a partir dessas narrativas. O que me parece bater com o argumento do Yuval Hariri em Lições para o Século XXI quando considera que o que une um povo é o fato de compartilharem histórias, lingua e cultura em comum. Dessa forma o que temos são diferentes “civilizações” baseadas nessas identidades comuns. Cada uma lutando para que seus valores culturais e religiosos próprios prevaleçam no que consideram seu espaço ou, eventualmente, se expandindo. O construtivismo também explica a afinidade entre governantes como Putin (Rússia), Trump (EUA), Orban (Bulgária), Modi (Ìndia) ou Bolsonaro (Brasil). Todos eles compartilham um inimigo em comum que será explicado logo abaixo.

Assim, Putin planeja reconstruir o império russo a partir da identidade eslava e do cristianismo ortodoxo, tendo ele como czar pós-moderno. Portanto as bases da atual ordem internacional, baseada em valores liberais e cosmopolitas conforme abordagem liberal, são uma ameaça direta ao seu projeto. Nesse aspecto para Putin a luta pela Ucrânia é a defesa de sua visão de Rússia. Para ele “perder” a Ucrânia para a civilização ocidental é inaceitável.

Conclusão

Como o próprio autor disse no início, não existe teoria perfeita, Mas elas ajudam a entender a complexidade do mundo, como ele é percebido e a lógica que guia certas decisões e a dinâmicas do eventos. Citando ele mesmo:

As decisões políticas também são tomadas, às vezes de maneira inconsciente, com base nessas simplificações teórico-filosóficas. Enquanto não houver uma discussão franca sobre como os principais atores envolvidos veem o mundo, qualquer solução será praticamente impossível

Guilherme Casarões

Por exemplo, aqueles que defendem que o conflito começou com a pressão do ocidente para levar a Ucrânia não necessariamente são torcedores do Putin, mas provavelmente acreditam no realismo; quem vê o conflito como a luta entre o tirania e liberdade provavelmente é liberal e quem considera isso um conflito entre a civilização eslava, que Putin deseja comandar, e o ocidente deve ser construtivista.

Também é possível triangular entre as três abordagens e considerar que o ocidente ajudou a plantar as raízes do conflito, mas que a Rússia perdeu a razão ao invadir a Ucrânia e desrespeitar o direito a livre determinação do povo ucraniano sem necessariamente passar pano para nazista e, por fim, que o conflito reflete esse choque entre identidades diferentes.

No mais, passear pelo twitter tem algo de mineração: no meio das pedras e pó surge uma jóia de vez em quando. A restrição de espaço rende algumas análises que são um primor de síntese de um assunto complexo. O fio original do professor Casarões demonstra bem como uma excelente base teórica é necessária para simplifcar um assunto para leigos sem perder algo importante.

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