Dentre as diversas controvérsias do Brasil nos anos 2020-21 tivemos uma relacionada à inclusão escolar. Demonstrada pela posição do então ministro da educação questionando as políticas de inclusão nas escolas. Segundo ele, as crianças com deficiência “atrapalham” o ensino das demais crianças. Porém, minha experiência pessoal discorda dessa suposição. Esse texto é minha visão, estritamente pessoal e não envolve a de qualquer instituição.
O projeto
Entre os anos de 2017 e 2019 trabalhei com um projeto aplicando um jogo de tabuleiro sobre o Cerrado em escolas do Distrito Federal. O desenvolvimento desse jogo foi o tema do meu mestrado. Considerando que o jogo tinha dezenas de situações de aprendizagem e a quantidade de informação para se aprender as regras poderia ser pesada, no planejamento eu fiquei pensando sobre como os estudantes com deficiências intelectuais ou motoras lidariam com o jogo. Afinal, eu levava um grupo de monitores que treinei para ajudar os alunos a entender o jogo, especialmente na primeira partida. Os monitores estavam ali como facilitadores justamente para garantir que eles entendessem as regras, aumentando a chance dos alunos terem uma experiência positiva. Assim, entre os facilitadores haviam alguns com experiência em escolas e pedagogia. Combinava com os professores das escolas que se houvessem estudantes com deficiência eu fosse avisado. Assim, deixaria com os meus facilitadores especiais, aqueles com experiência em pedagogia. Eu torcia para que isso fosse o suficiente.

A experiência de campo
Minha primeira relação com a inclusão veio antes, em 2013. Em um evento apresentei o jogo de Cerrado. Ainda que os resultados dessa experiência preliminar não tenham sido os melhores, eu colhi alguns aprendizados interessantes para o futuro. Para resumir, o fator inclusão afetou a experiência com o jogo. Não porque ele seja um problema, mas porque eu ainda não sabia o que era necessário para aplicar o jogo de forma adequada. Puxando minhas memórias daquele evento eu aprendi o seguinte:
(…) Outro aspecto digamos… didático dessa conversa veio quando perguntei qual a opinião da professora sobre turmas inclusivas. Eu confesso que era cético quanto a ideia. Sempre me pareceu coisa de burocratas politicamente corretos inventando regras do conforto de seus escritórios e esperava ouvir o mesmo de alguém que está na ponta e realmente tem que fazer a coisa funcionar. Mas, para minha surpresa, a professora era francamente favorável. (…) De certa forma tomei um tapa com luva de pelica, merecido diga-se de passagem. É a diferença que percebi é o que diferencia uma escola para formar cidadão de uma fábrica de passadores de prova. Professoras como essa mereciam uma estátua de bronze num parque ou, melhor ainda, salário e condições de trabalho decentes e à altura da tarefa que desempenham.
Jogando no aniversário da Àgua Mineral (2013)
Quando a minha experiência no projeto começou, foi um prazer ver que a realidade foi bem diferente das minhas preocupações. Os estudantes deficientes existem. Demandam uma atenção especial, mas ao contrário do que disse o ministro, eles não atrapalham. Numa das escolas um deles começou a chorar porque os colegas se empolgaram durante uma partida e pularam a vez dele. A facilitadora controlou a situação e, com a ajuda dos colegas, ele se acalmou e continuou jogando. Ele tinha dificuldades de leitura e ela o ajudou com as regras e a controlar a própria ansiedade. Eventualmente essa facilitadora me indicava em suas anotações quando encontrava algum estudante com dificuldades e comentava suas hipóteses sobre as possíveis deficiências que encontrava.
Em outra escola havia uma aluna com sérias limitações motoras. Ela usava cadeira de rodas, precisava de uma cuidadora, tinha dificuldade para falar e até mesmo para encaixar as peças. A facilitadora percebeu que, inconscientemente, a cuidadora estava tentando jogar no lugar dela e a incentivou deixar a própria aluna jogar. Apenas ouvindo e deixando que a aluna indicasse quais seriam suas jogadas. Só por essa percepção já me valeu ter essa facilitadora na equipe. O resultado foi que no final da partida essa aluna ganhar o placar mais alto do jogo. Cognitivamente ela estava ótima.
Eventualmente eu mesmo cuidava de um grupo. Num desses casos, eu estava explicando para um aluno o que ele poderia fazer dentro do jogo e foi um de seus colegas que me avisou que eu não devia me preocupar. Ele estava entendendo tudo o que poderia entender. Foi quando eu entendi que a dificuldade dele era por causa da deficiência, seu colega educadamente estava me avisando que eu não deveria tentar forçar demais. A partida seguiu, com ele jogando o que poderia. Seus colegas o tratavam com naturalidade, sem expressar desprezo ou pena e mesmo com suas limitações o aluno estava se divertindo com a experiência.
Conclusão
O que pude observar é que a inclusão faz com que os alunos com deficiência aprendam mais. O que bate com o que a professora do evento de 2013 havia me dito. Aprender também significa interagir e a imitação também é uma forma de aprendizagem. Um ambiente social diverso é uma excelente fonte de aprendizagem. Tanto que o Steven Johnson considera a diversidade um incentivo à inovação.
O outro aspecto é o coletivo, a convivência com os alunos tão diversos torna todo o grupo mais tolerante. Conviver derruba estereótipos e preconceitos, cria vínculos. E isso é uma proeza ainda maior num ambiente feito para uniformizar as pessoas como a instituição escola. Nesse aspecto, acredito que as novas gerações serão melhores que a minha e as anteriores.
Como observado pelo Mário Sérgio Lima, a fala do ministro pode ser considerada equivocada em, pelo menos, três níveis:
- pedagógico, porque os alunos com deficiência aprendem mais convivendo com os outros;
- humano, porque as crianças comuns criam vínculos com alunos com deficiência, desmistificam o senso comum sobre deficiência e se tornam mais tolerantes e inclusivas;
- político, porque excluir milhares de famílias de alunos com deficiência ou confiná-las em um gueto não melhora a nossa sociedade, mas a recíproca é verdadeira.
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