
Recentemente li “A Guerra não tem rosto de mulher” da autora bielorussa Svetlana Aleksiévitch. Admito que gosto de história militar e um acontecimento como a Segunda Guerra Mundial é uma parada obrigatória para os fãs do gênero, especialmente a frente russa. O que ocorreu ali teve uma imensa quantidade de pessoas e recursos materiais, bem como influiu nos destinos do mundo ao longo do século XX. Para a União Soviética, e os povos que faziam parte dela, foi praticamente uma luta pelo direito de continuar existindo. O qual foi conquistado sob terríveis sacrifícios.
Minha pequena revisão de Literatura
O assunto já foi extensamente abordado por excelentes escritores. Eu gostei muito de Stalingrado, Berlim 1945 do Anthony Beevor, Histórias das Guerras do Demétrio Magnoli e Unsung Heroes do Erik Durschmied, sem contar os vários documentários. Essas leituras são objetivas e excelentes para se ter uma visão geral do conflito. Porém Svetlana trouxe uma abordagem diferente para o assunto. Afinal, a União Soviética foi notória pelo extenso emprego de mulheres. Isso ocorreu em outros países também. Por exemplo, a rainha Elizabeth II do Reino Unido foi mecânica e motorista e mulheres também participaram em vários dos movimentos guerrilheiros de resistência que existiam durante a guerra. Porém, em nenhum lugar tantas mulheres participaram de forma tão intensa quanto nas estepes da Rússia.
A leitura

No Exército Vermelho as mulheres não atuavam apenas nas funções “usuais” de apoio como enfermeiras, telefonistas, lavadoras ou mensageiras, mas até mesmo em atividades de combate direto: como franco-atiradoras, pilotos militares e operadoras de canhões antiaéreos. Ao longo do livro essa me pareceu uma atividade feminina um tanto comum. O que bate com o que li no livro do Beevor sobre Stalingrado. Várias armas antiaéreas lutaram contra aviões e até mesmo tanques e há várias citações de serem tripuladas por mulheres jovens residentes em Stalingrado.
Para quem estava acostumado com os relatos objetivos e ao mesmo tempo detalhados do Beevor, o trabalho da autora me surpreendeu, no bom sentido. A abordagem é muito mais subjetiva, exploratória e pessoal. O que torna a leitura totalmente diferente dos livros “comuns”. O trabalho foi essencialmente baseado em entrevistas com mulheres que atuaram na guerra. Ela não está procurando a guerra vista nas decisões dos generais, nas armas modernas ou nas grandes manobras. Muito pelo contrário, o foco dela foi no micro, no pessoal, nas diferentes visões, as diferentes guerras. O objetivo dela foi justamente encontrar o que a historiografia usual que conhecemos ignora. A autora basicamente saiu por diversas cidades procurando essas mulheres e entrevistando, buscando o que elas geralmente não contavam: a guerra que elas viram, o aspecto feminino que só elas poderiam narrar. Muitas inicialmente se concentravam nas versões oficiais que todo mundo conhece, as reconhecidas, assépticas e seguras. Em alguns casos a autora foi mais de uma vez, trabalhou para ganhar a confiança de suas entrevistadas e deixar claro que elas não seriam julgadas pelo que diriam. Segundo a autora, muitas vezes as entrevistas com a família eram de um jeito e as entrevistas individuais eram de outro.
O resultado é avassalador, os relatos não contradizem vários pontos da historiografia tradicional, até os corroboram. Por outro lado eles dão uma profundidade impensada, as estatísticas de combatentes e feridos deixam de ser números e voltam a ser pessoas. Lendo esse livro é possível entender qual foi a visão de uma pessoa comum, é possível submergir na guerra. Para mim foi como está lá e perceber que a guerra teve uma escala tão grande que as pessoas foram simplesmente tragadas por ele. Muitos simplesmente morreram, outros foram transformados pela experiência, ninguém saiu o mesmo.
Outro mérito está no fato de que Svetlana Aleksiévitch não procurou apenas as pessoas “esperadas” com funções de status, como as pilotos. Ela foi bem diversa, foram entrevistadas franco-atiradoras, enfermeiras, pilotos, lavadeiras, guerrilheiras, trabalhadoras das fábricas, deputadas, enfim a diversidade era imensa.
E essa diversidade foi importante porque mostra coisas que passam despercebidas nos livros tradicionais. Coisas que foram ignoradas porque não ocorreu a pesquisadores do sexo masculino procurar por essas coisas. Por exemplo, várias mulheres já começaram lutando para conseguir fazer parte das fileiras militares. Muitas não se contentaram com os papéis femininos, mas enfrentaram arduamente a burocracia e o machismo de seus colegas para atuar onde fosse necessário. E mesmo nas tarefas mais próximas ao estereótipo feminino o desafio era imenso. Por exemplo, o trabalho das enfermeiras-instrutoras resgatavam feridos no meio da batalha. As dos batalhões de tanques, iam fora dos blindados porque não havia espaço para elas dentro e frequentemente entravam em tanques em chamas para resgatar feridos, muitas vezes carregando homens muito mais pesados que elas. Além desses também temos os relatos das lavadeiras, das mensageiras, enfermeiras, cirurgiãs e operadoras de rádio.
Uma parte que achei especialmente impressionante foi a das partisans, as mulheres que se juntaram aos movimentos guerrilheiros em território ocupado. No início da invasão alemã, conhecida como Operação Barbarrossa, os alemães avançaram tão rápido que muita gente ficou presa nesses territórios. Os relatos dos crimes de guerra perpetrados pelos alemães são chocantes mesmo para quem já leu sobre o assunto, mas o mais surpreendente são aquelas preocupações que raramente ocorrem a um homem: como o aspecto familiar. A autora conta sobre as mulheres que não podiam mais isolar seus filhos da guerra tiveram que se esconder com a guerrilha levando os filhos, ou foram obrigadas a cumprir missões levando eles nas costas. Também se fala das crianças que se esgueiraram entre patrulhas inimigas para levar mensagens e das famílias que estavam em risco por abrigarem guerrilheiros ou mesmo serem vítimas de represálias simplesmente por estarem em solo ocupado e serem tão russas quanto os guerrilheiros. Além disso, existia a extenuante jornada de trabalho de 4 anos para aquelas que ficaram trabalhando nas fábricas ou os casais e famílias que se formaram em meio à batalha. Alguns decidiram que se caso morressem, que fossem levados juntos pela mesma bala ou a mesma explosão. Se isso já e impressionante para um casal, imagine para uma família.
O livro fala muito sobre a paixão das mulheres que acreditavam que seu país e seu povo mereciam ser defendidos e também haviam aquelas que sinceramente acreditavam no comunismo. Porém a autora não deixa de observar os pecados desse povo e dessa ideologia: como as perseguições que muitas sofreram no retorno, especialmente quem caiu prisioneira e o período de ostracismo no retorno à vida civil. Aquelas que aprenderam a usar armas, roupas de militares e falavam palavrões foram tratadas com desprezo por outras mulheres e um silêncio constrangido e omisso de seus antigos colegas de farda. Não puderam continuar a carreira militar, mas também não eram bem recebidas pelo mundo civil.
Outro livro excelente sobre essa participação feminina é As Bruxas da Noite da escritora italiana Ritana Armeni. Esse é mais focado e aborda a história do 588º Regimento de Bombardeio Aéreo Noturno Soviético ao longo da segunda guerra, com destaque para o papel de sua fundadora, a aviadora Marina Raskova que já era um marco da aviação antes da guerra. Um detalhe que gostei muito no livro das “Bruxas” é uma pequena história que a autora conta para sua neta.
Conclusão
Para escritores o livro pode ser uma excelente inspiração na criação de personagem femininas. As que viveram e morreram nesse período mostraram como a realidade pode ser muito mais intensa que a ficção. Para escolas, renderia um excelente trabalho para alunos do nível médio. Além do óbvio tópico de história seria útil para abordar questões de gênero.
O livro é resultado de um imenso trabalho de coleta, análise de dados e a autora não deixa de citar a ajuda que teve de estudantes de nível médio da época. A autora mostra uma realidade que não pode ser apreendida pelas estatísticas e dá uma visão humana ao conflito. Não é a visão do general ou do guerreiro implacável, mas nesse livro é possível ter a perspectiva das pessoas comuns frente a um evento imenso. É como uma catástrofe natural que tragou todos os que estavam ali. Ainda assim, creio que um dos aspectos impactantes foi mostrar que elas não deixaram de ser mulheres nem nesse ambiente monstruoso. De qualquer forma, a impressão que eu tive é que o Nobel dela foi muito merecido.