Artes Marciais e jardinagem


Sei que a ideia soa estranha, mas acredito que existia uma boa razão para o Senhor Myagi ter um excelente jardim em sua casa. A prática de jardinagem e trabalhos similares pode ser útil para o treinamento dos praticantes de artes marciais e essa relação está longe de ser recente.

Exemplos históricos

Corta plantas e outras coisas também
Foto por Engin Akyurt em Pexels.com

Num mundo pré-civilização a capacidade de lutar era tão importante quanto a de coletar comida e fazer abrigo. Tanto que no livro Uma história da Guerra, o historiador John Keegan considera que os povos de pastores deram origem a várias culturas guerreiras. Isso ocorreria porque pastores nômades já trabalham em seus cotidiano com manobras para cuidar de seus animais, deviam proteger suas crias de predadores e sempre estiveram acostumados a criar animais desde filhotes e matá-los quando chegasse a hora. E claro, frequentemente esses povos pastores complementavam sua alimentação pilhando os primeiros agricultores. Afinal suas colheitas e o fato de estarem sempre fixos em um território para conseguir plantar deviam atrair uma certa atenção dos nômades, caçadores-coletores. Os quais também conhecidos pelos romanos simplesmente como bárbaros. Dentre os exemplos temos os Hunos e os Mongóis,. Assim, os povos agricultores certamente tiveram que se adaptar para fazer frente à esse tipo de ameaça. Isso pode ser observado através das diversas armas que foram adaptadas de instrumentos agrícolas, como o Ssahng Jeol Bong coreano, mais conhecido por aqui como nunchaku, que antes de ser arma era uma ferramenta para colheita de arroz. No japão, as foices, conhecidas como Kama, também tiveram várias adaptações como arma. E o mangual europeu era uma arma de impacto inicialmente utilizada para debulhar cereais. Isso sem falar nas diversas lâminas, como as foices e enxadas.

O exercício jardinagem

Existe um ditado filipino que o mestre Dada gosta citar que diz “melhor um guerreiro num jardim que um jardineiro na batalha”. Talvez porque um bom guerreiro possa ser um excelente jardineiro. Tanto que ele mesmo é um entusiasta da jardinagem e incentiva a prática para seus alunos. Eu confesso que não entendia muito qual seria lógica dessa ideia até praticar um pouco de jardinagem nas férias. Até o trabalho de capina acaba sendo um bom exercício.

Além do aspecto físico de carregar pesos e usar de ferramentas manuais, eu me surpreendi em ver como a prática de poda é um belíssimo exercício para quem usa armas de corte ainda que seja algo óbvio. Por exemplo, na arte Filipina do Arnis Kali o praticante começa treinando com bastões e só depois de adquirir alguma experiência passa para as lâminas. Isso acontece devido à algumas sutilezas:

  • no caso do bastão é possível obter impacto independente do lado com que se bata, enquanto no caso da lâmina é preciso acertar com o fio num ângulo específico, é algo simples mas que demanda prática;
  • para se desenvolver a habilidade de corte é preciso testar e avaliar os cortes, é impossível fazer isso com facas de treino sem fio ou em objetos como um saco de treino.
  • o uso do pulso faz muita diferença para se obter um corte eficiente, existe um movimento do pulso que precisa ser feito para fazer o fio “correr” sobre o objeto a ser cortado;
  • a lâmina demanda menos força, mas muito mais precisão e a tal da fluidez, que só vai ser entendida com a prática;
  • é preciso desenvolver habilidade para saber onde acertar, escolhendo o ponto mais frágil para render o melhor corte.
  • o trabalho é (muito) repetitivo, são dezenas ou mesmo centenas de movimentos repetidos para ganhar prática. Porém, esse é o melhor caminho para se obter o domínio de uma habilidade.
Um dos instrumentos mais antigos que existem
Foto por samer daboul em Pexels.com

Voltando aos exemplos históricos eu imagino que essa prática de jardinagem/agricultura ajuda a explicar o tempo que o Quilombo de Palmares resistiu. A maioria dos escravos que escapou para o quilombo trabalhava nas lavouras de cana. A colheita era feita com facões, por gente trabalhando com podão ou facão ao longo da vida. Para dar uma ideia da “produção” desse povo: em 2004 a média diária por trabalhador era de mais de 7 toneladas por dia, com equipamento manual não muito diferente do que era usado séculos atrás. Imagino como devia ser encarar um guerreiro com essa “habilidade” no meio do mato e numa época em que armas de fogo tinham alcance menor e demoravam muito mais para recarregar.

Outra atividade ótima é cortar lenha. Algo feito com outra ferramenta que virou arma desde tempos ancestrais, o machado. Para isso ser feito de forma eficiente é preciso mirar nas rachaduras da madeira e respeitar o sentido das fibras. Ao mesmo tempo, os machados pesam e o fio de lâmina é bem mais curto. O que combina a necessidade de força e precisão. Até porque ninguém deseja um acidente com uma ferramenta dessas.

Outro ganho dessas atividades é o calejamento. A prática repetida aumenta a resistência muscular e da pele ao impacto constante. Essa é uma característica importante para os lutadores e só pode ser ganha com a prática constante, não há como queimar etapas. Na verdade, forçar um exercício para o qual ainda não se tem calejamento suficiente, como o impacto nos punhos é meio caminho andado para ganhar uma lesão.

Conclusão

Ainda que soe bem incomum, acredito que a prática de jardinagem pode ser um exercício bem saudável e uma forma de exercitar habilidades que serão úteis, tanto em termos de resistência física como de precisão, coordenação motora e até mesmo habilidades mentais como paciência e foco.

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