
No final de 2020 vários países do mundo enfrentam a segunda onda de Covid-19 e o número de mortos bate a casa dos milhões. Ainda assim é notória a resistência de algumas pessoas às medidas para conter a expansão da doença, mesmo que seja por meio de atos simples, como o uso de máscaras e evitar aglomeração.
Acredito que existam movimentos organizados para promover essas ideias para atender suas próprias agendas e o fazem com muito conhecimento sobre o comportamento humano. Ainda que essa resistência não é exatamente original, mesmo durante pandemias ainda mais terríveis, como a Gripe Espanhola houveram revoltas contra as medidas de proteção, como a infame Liga Anti-Máscara nos EUA. E o Brasil não fica atrás com a vergonhosa lembrança da Revolta da Vacina. Atualmente o movimento antivacina está repentindo os mesmos argumentos daquela época. Ao menos as pessoas de fins do século XIX e início de século XX podia alegar que essas eram tecnologias novas e não testadas. O que não tolhe a cara de pau dos antivacina.
Para entender melhor o que passa na mente desse povo, pesquisadores da Universidade de Londrina fizeram uma investigação para observar se existia alguma relação entre características anti-sociais e a aceitação das medidas para conter a pandemia no Brasil.
Um pouco sobre os instrumentos
Uma das várias coisas interessantes da psicologia e da psiquiatria é que existem diversos instrumentos para se entender a personalidade humana e doenças mentais. Várias deles permitem observar comportamentos sutis como: desonestidade, manipulação, pouca empatia pelo próximo, irresponsabilidade e até mesmo psicopatia. Essas “réguas de personalidade” são instrumentos de pesquisa sólidos, baseados em muita observação do comportamento humano e até mesmo estudos da anatomia e funcionamento do cérebro. Já foram estudadas pessoas de todos os tipos, variando de criminosos irrecuperáveis à voluntários em trabalhos assistencial. Dentre os diversos instrumentos de avaliação, temos a famosa tríade sombria, que observa os piores traços da personalidade humana e seu inverso, a tríade da luz. Esses instrumentos funcionam como medidas e não características absolutas. A ideia não é fazer um julgamento de valor sobre as pessoas, mas combinar diferentes medições dessas características para descrever a personalidades. Dessa forma, o número de combinações possíveis é imenso.
É óbvio que ninguém esperto mostra apresenta características vistas pela sociedade como execráveis espontaneamente. Essa é uma velha conhecida dos pesquisadores e conhecida como a desejabilidade social. Afinal, ninguém deseja ser visto como o vilão, mesmo que o seja. As pessoas podem ser muito competentes em dissimular e esconder seu rastro. Porém, o mérito de um bom pesquisador ou entrevistador é justamente fazer as perguntas certas e/ou observar as ações que levam a indivíduo a mostrar o que realmente acredita, mesmo em temas controversos. O link acima sobre desejabilidade social descreve bem alguns desses recursos para estudos sobre preconceito. Afinal, quase hoje em dia praticamente ninguém deseja ser visto como preconceituoso.
Para saber mais sobre o assunto, uma série infantil que recomendo é Eu e o Universo, disponível no Netflix. Existem diversos programas de divulgação científica, mas esse é especialmente interessante por descrever são alguns desses estudos de comportamento.
O estudo
Essa pesquisa é particularmente pertinente considerando os milhares de mortos e infectados resultantes da pandemia no Brasil e foi considerado o primeiro estudo do tipo na América Latina. Os pesquisadores de Londrina analisaram aproximadamente 1578 brasileiros através de instrumentos para observar traços de personalidade relacionados ao transtorno de personalidade anti-social. Uma doença identificada no manual de diagnóstico de doenças mentais da associação de psiquiatria americana, o DSM-5. As características desse transtorno combinadas com baixa empatia (algo que também pode ser mensurado) são geralmente associadas à comportamentos criminosos e violentos.
Em paralelo, os pesquisadores observaram como as pessoas pesquisadas se sentiam em relação às medidas para evitar o contágio, como o uso de máscaras, distanciamento social e outras medidas. Bem como observar a os participantes se fizeram testes para Covid, conhecem pessoas infectadas ou mesmo se ficaram doentes. A hipótese que os pesquisadores queriam observar, como observados em estudos de outros países, é se pessoas com que marcam resultados altos nos indicadores de tendências antissociais tendem aumentar o risco de contágio para si e para outras pessoas.
Os resultados
A análise dos dados indicou que baixos graus de empatia, características anti-sociais insensibilidade e tendência a comportamentos arriscados está diretamente associada a não aceitação das medidas para evitar o contágio mesmo quando o número de mortes aumenta. Pelo que entendi foi observada uma forte correlação entre não se cuidar e altos escores nos itens antissociais avaliados pelos instrumentos. Expor a si mesmo e aos outros, mesmo quando isso pode ser evitado, seria uma tendência típica de gente tendências antissociais e pouca empatia.
Em termos de limitações, como os próprios autores colocaram, o estudo não é representativo de toda a população brasileira, pois a maioria dos participantes foi da região sudoeste e com nível educacional mais alto que a média da população. Portanto, não se pode considerar que foi uma questão de ignorância. Por outro lado, foi observado que apenas uma minoria chegou a contrair a doença ou conhece alguém infectada.
Outros estudos
É claro que não se pode considerar personalidade como único fator. A polarização política e o trabalho de oportunistas para criar dúvidas sobre as medidas de saúde também teve impacta o comportamento das pessoas. Estudos americanos afirmam que a polarização influenciou a adoção de medidas de saúde, especialmente devido às críticas do então presidentes americano Donald Trump.
O fator gênero
Um detalhe da pandemia de Covid-19 que chamou a atenção de médicos e cientistas das centenas de países atingidos: Por que a doença mata mais homens que mulheres?
A tendência foi observada desde sua origem, na China, mas se repetiu em diferentes países como França, Alemanha, Irã, Itália, Coreia do Sul e Espanha. No Brasil, os resultados não foram diferentes: 58% dos óbitos por covid-19 foram de pacientes do sexo masculino.
Ainda que a doença tenha sido descoberta recentemente, o que significa que ainda há muita coisa por descobrir, um das suspeitas é que o problema não é apenas físico ou biológico, mas resultado dos valores, crenças e comportamento de nós homens.
Segundo a Fiocruz, um desses aspectos é o tabu em torno fragilidade. De forma subconsciente ou muito consciente mesmo, nós tendemos a considerar demonstrações de cuidado pessoal como um demonstração de fraqueza. E no momento esse medo se reflete no uso de máscaras. Ainda que já exista um razoável consenso científico sobre a importância das máscaras como forma de conter a expansão da doença. Evitar ir a um evento, como uma festa, também seria visto como uma forma de evitar risco e, consequentemente, medo.
De acordo com o estudos, a aversão ao uso de máscara é mais comum em homens que mulheres. E um detalhe importante, independente do nível social. O pesquisador americano Peter Glick concorda e observar que ser cauteloso, evitar correr riscos, como usar uma máscara numa pandemia, seria visto como uma demonstração de dúvida e, em última instância, de fraqueza.
Conclusão
A luz dos resultados é possível dizer que todo mundo que desconfia das medidas de proteção é desonesto ou tem algo de criminoso? De jeito nenhum, mas é possível dizer que pessoas antissociais tendem a não respeitar medidas que significam um benefício coletivo.
Um detalhe do discurso “pró-covid” (me parece uma boa expressão para descrever certas pessoas) é que as medidas seriam uma restrição das nossas liberdades. O que seria evidenciado pela importância do estado para coordenar os esforços de saúde, o que colocaria em cheque a liberdade economica; ou restringindo as liberdades individuais com as medidas de restrição. Seria outro tópico interessante para o estudo. Pessoalmente, acredito que o mundo não é tão simples. A liberdade individual nunca foi absoluta e fazer mal ao outros, como infectá-los, sempre foi uma limitação óbvia. Não me lembro de quem era a frase, mas vi um óitmo exemplo para liberais preocupados com a questão mercado x estado: se a economia de mercado normal for um elevador, a interferência estatal é a escada. A escada pode ser menos eficiente, mas é muito mais segura numa situação de crise, como um incêndio. Na situação normal muitas atividades podem ser executadas pelo mercado de forma mais eficaz, mas numa crise como a pandemia a intervenção do estado e a limitação temporária de liberdades são necessárias. Existe uma diferença entre ser cauteloso e fundamentalista, tanto que vários liberais razoáveis defendem as medidas atuais.
Um aspecto que, a meu ver explica do discurso negacionista é a maldita da dissonância cognitiva, o esforço que fazemos para manter as nossas crenças mesmo quando a realidade coloca essas crenças em cheque. Frente a uma situação desconfortável onde essas crenças são questionadas e provocam a sensação de impotência a mente humana pode ser capaz de incríveis e terríveis piruetas retóricas para não se adaptar à nova situação. Como aceitar uma restrição no direito de ir e vir na atual situação para garantir a saúde publica. O que me lembra aqueles filmes de terror em que um personagem faz algo que coloca todo mundo em risco, como abrir a porta por onde entram os zumbis ou entrar na floresta escura porque “ele vai aonde quiser”. Eu sempre achava inverossímil pensar que alguém seria capaz dessas coisas estúpidas, mas a arte mostrou que pode ser mais real do que pensamos.
No mais, a pandemia teve um forte impacto na saúde mental das pessoas. Os estudos de comportamento são importantes para promover campanhas educativas mais eficazes e fazer frente as campanhas antivacina e oportunistas que capitalizam a doença para uso político. Entender como as pessoas lidam com esse tipo de crise é mais importante do que nunca.
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