Dilemas literários: viver no Brasil de 2020 já é uma aventura


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Foto por Pixabay em Pexels.com

Tempos atrás li alguém reclamando sobre as poucas histórias de ficção, fantasia e terror localizadas no Brasil. Como eu achava que o sujeito estava rendondamente equivocado resolvi escrever um texto falando dos diversos (e bons) autores brasileiros desses gêneros que andei lendo em 2020.

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Autor: Ikarow

Porém, um comentário no twitter me deu o que pensar. Por um lado é realmente bom ver que existe produção nacional retratando algo além de bruxas celtas, naves com nomes saxões e halloween americano.  Isso vale tanto para a literatura quanto videogames. Em algumas SBGames eu ficava um tanto incomodado com a diversidade de projetos nacionais com temas como goblins, orcs e cia. Produções com temática nacional pareciam as exceções que confirmavam a regra: a preferência pelo estrangeiro. Nada contra essa opção. É segura e uma forma de reduzir o risco apostando no que o mercado já conhece. Porém, se os produtores e habitantes daqui não falarem de sua própria cultura dificilmente alguém mais o fará.

Para apimentar a questão um fio estendido pelo escritor Miguel Alencar  no twitter  levantou algumas (boas) razões sobre as dificuldades de escrever sobre o gênero terror no Brasil. O principal argumento dele é que vivemos num país onde a realidade já cria uma concorrência razoável para a ficção. Como falar sobre morte de forma convicente e impactante para leitores que costumam a ver cadáveres baleados ou esfaqueados nas ruas de vez em quando? Como fazer uma trama policial num país em que o criminoso  descoberto tem uma boa chance de nunca ser preso, a depender do dinheiro e dos contatos? Como fazer uma trama de tribunal onde os processos ficam engavetados por décadas? Que terror pode soar mais surreal e bizarro que uma notícia de jornalismo policial sensacionalista com sádicos requintes de detalhe? Cultos destruindo templos alheios ou clamando pela destruição dos supostos inimigos são notícias de jornal usual. Quem corre o risco diário de morrer numa fila de hospital, num assalto ou por antipatia policial pode não ter fé nenhuma ou pode acreditar em todos anjos, santos, simpatias e amuletos. Quão assustador é um zumbi comparado a virar numa rua errada e cair no meio de uma cracolândia? Ser seguido numa rua deserta? Viver no Brasil de 2020 já é bem assustador.

Esse fio bate especialmente se considerarmos o perfil dos escritores no Brasil que coloca a maioria dos escritores como originários da região sudeste, de classe média e homem. O que bate com o que foi observado pela professora da UnB Regina Dalcastagnè que considera o o perfil do romancista brasileiro como: homem, carioca ou paulista, branco e de classe média, que escreve sobre outros homens brancos de classe média, com suas questões e em seu ambiente. Por exemplo, no caso do gênero terror, o que um escritor nesse perfil pode produzir de assustador para o leitor que está fora dessa bolha?  Para quem mora numa comunidade com pouco acesso a serviços do estado,  a não ser que seja feita uma excelente pesquisa, provavelmente a resposta será “muito pouco”. Esse perfil de leitores também explica em muito uso de elementos europeus e americanos nas histórias de de fantasia, terror e ficção nacionais. O que reflete a limitação da própria bolha social onde vivem os escritores e editores. Para ilustrar como essa bolha pode ser restritiva o escritor Alec Silva observou: “Do alto de sua bolha, já parou pra pensar que existe mais escritores sem acesso à internet do que supõe sua vã filosofia?”

Portanto, se a tática de usar fórmulas e criaturas européias em novas locações funciona (alguns dos livros que citei em um artigo anterior fazem isso) outros raros conseguem ir além, como o Porém Bruxa e alguns da Série Carcarás. Como observado por Miguel e pelo roteirista Felipe Castilho  o que podemos fazer é ir mais longe. Se falar de monstros brasileiros já é um avanço, cultura tradição e legado também contam, e muito.  Ambos  observam que os escritores precisam ir mais fundo, aos rincões do país, procurar as pessoas mais velhas e os subúrbios estão cheios de boas histórias e referências. É preciso abandonar o conforto da para produzir mais e trazer novos leitores e engajar os antigos. Como disse Matt Ruff, author de Território Lovecraf “seria tedioso ler só sobre pessoas como eu o tempo inteiro”.

modernismo-ogO que eles propõem é similar ao que aconteceu no Brasil dos anos 20, especialmente na época da semana de arte moderna. Como observado por Guilherme Feliti, O objetivo da Semana de 22 era quebrar o classicismo da produção artística brasileira, que era pautado pela estética européia desde os tempos de Dom João IV. A proposta dos modernistas era desenvolver e explorar novas linguagens artísticas e para tanto foi inevitável explorar o país. Em 1924, artistas modernistas  partiram para o interior de Minas Gerais na chamada Caravana Modernista ou Viagem da Descoberta do Brasil. Mário de Andrade explorou a Amazônia em busca dessa identidade, com impactos visíveis em suas obras. Quase 10 anos depois uma expedição similar foi para Pernambuco e Paraíba. O resultado desse trabalho para dar ao modernismo uma identidade nacional foi um legado duradouro, na arte, arquitetura e design. Para quem não pode bancar isso (a maior parte dos mortais) uma boa sugestão do Miguel Alencar é procurar referências como o Dicionário do Folclore Brasileiro.

Outro ponto essencial é diversificar os escritores e editores, gente com origens diferentes produz coisas diferentes. Movimentos como afrofuturismo, sertãopunk e silkpunk ilustram bem como a diversidade pode ser boa. Um desafio que vem sendo assumido por várias editoras menores e independentes, e financiamento coletivo. Até mesmo a autopublicação é viável hoje em dia. Na outra ponta, a dos leitores, os clubes de leitura formam um grande incentivo ao ato de ler. Torço para que o mercado, que precisa sair da crise, seja capaz de fazer frente a esse desafio nos próximos anos.

3 comentários em “Dilemas literários: viver no Brasil de 2020 já é uma aventura

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  1. Pois então, talvez seja a minha bolha, mas cada vez menos eu vejo autores e autoras utilizando elementos europeus e “tolkenianos”. Das obras recentes que caíram no meu colo, todas eram algum “punk”, seja especialmente steampunk.

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    1. Bem, isso é algo comum nas bolhas. Esse texto mesmo começou a partir uma crítica de alguém que geralmente via obras com elementos europeus e americanos. Mas fiquei curioso, o que exatamente você quer dizer com “punk”?

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