Divulgar ciência é mais complicado do que parece


O título acima é especialmente verdadeiro quando as resultados são os chamados contra-intuitivos para os quais a lógica ou senso comum funcionam pouco ou são simplesmente atrapalham. O problema que existem vários casos assim, que à primeira vista parecem ser perfeitos absurdos mas é possível entender após uma análise mais crítica e desapaixonada. Dentre os vários exemplos temos:

As engrenagens da dificuldade

Existem algumas razões que explicam nossa dificuldade para lidar com o contra intuitivo:  Piaget provavelmente diria que são resultados que contrariam as estruturas cognitivas, preexistentes. Em português, se considerarmos essas estruturas cognitivas como “crenças” observamos que a mente humana vai tender a manter suas crenças e quanto mais arraigada a crença mais desconfortável será ter ela questionada, é a chamada dissonância cognitiva.  Assim,  surge a a tendência a elaborar argumentos que contrariem as informações novas e mantenham as crenças anteriores. O outro problema é a capacidade de abstração. Nosso cérebro evoluiu para entender coisas simples, como o padrão de pegadas na lama que sugere o tamanho e o tipo de animal que percorreu um lamaçal; o padrão de balanço da folhagem que serve para diferenciar o vento nas folhas da movimentação de um predador caçando, a capacidade de nos organizarmos em bando para caçarmos animais muito maiores que nós. Foi a capacidade de processar esses diversos dados em nosso cérebro que nos tirou das cavernas e permitiu nossa evolução. Segundo o pesquisador Daniel Kahneman, que ganhou um nobel por seus estudos sobre o comportamento humano, descritos em seu livro Rápido e Devagar, o pensamento humano pode ser dividido em 2 tipos:

  • O pensamento tipo 1 é rápido, intuitivo, trabalha com informações captadas por nossos sentidos, como visão, tato e olfato e demanda pouco esforço. É imediatista, fortemente baseado na experiência e influenciado por nossas emoções;
  • Já o tipo 2 é o lento, demanda racionalização, foco, análise crítica, coleta de dados, reflexão e esforço do cérebro, o órgão que mais consome energia em nosso corpo, 20% da energia obtida pela respiração vai para ele.

Voltando ao Piaget, o pensamento tipo 1 usa as estruturas cognitivas já existentes e o tipo 2 questiona, desconstrói e reconstrói essas estruturas. O tipo 2 foi o que nos permitiu sair das cavernas enquanto o tipo 1 foi o que nos permitiu sobreviver tempo o suficiente para fazer isso. Um é confortável e o outro desconfortável e a essa altura suponho que já é possível diferenciar quem é quem.

Assim, o tipo 1 é o que usamos na maior parte do tempo, o corpo naturalmente tende a poupar energia e fazer o esforço necessário. Porém um problema é que como o tipo um trabalha com dados visíveis e observáveis pelos sentidos acabamos com mais dificuldade para entender dados que não são detectáveis por esses sentidos, dados que demandam justamente a capacidade de abstração.  Para entender isso num exemplo prático. A maioria das pessoas tem dificuldade para entender números grandes e fatos que ocorrem numa escala muito maior que a humana. O que explica nossa dificuldade em entender a questão ambiental, o meio ambiente opera em uma escala de tempo e espaço muito maior que a individual, os danos ambientais de hoje podem se tornar catástrofes naturais décadas depois.

Outro exemplo claro é a Pandemia de Covid-19. Para muita gente, essa conexão entre o ato individual de usar máscaras e a enormidade da tragédia é uma abstração distante. E  considerar uma abstração desse tipo como difícil de conceber, ou  mesmo inexistente, é um pulo para quem não costuma a praticar o pensamento tipo 2. Para esse tipo de gente a própria escala é algo difícil de compreender. Em agosto de 2020 o Brasil chegava na escala dos 100.000 mortos, é tanta gente morta espalhada por um país tão grande que muita gente tem dificuldade em entender o que isso significa, a extensão é muito grande para alguém que quase nunca sai do próprio bairro.  O que cria um campo fértil para o negacionismo, algo que ocorreu em epidemias anteriores e agrava ainda mais a situação, como dizem: um morto é uma tragédia, milhares de mortos são apenas estatística.

Tudo isso descreve o desafio que a imprensa e divulgação científica precisam superar para fazer com que as pessoas entendam o que está em jogo. A simples oferta de números e informações não é suficiente, o que leva a busca por novas formas de oferecer essa informação de forma que possa ser entendida pelo maior número de pessoas possível, algo muito bem trabalhado pela área de infografia. Isso envolve não apenas a reflexão fria, mas um esforço para alcançar o emocional e colocar os fatos numa perspectiva dentro das capacidades do pensamento tipo 1. Nesse aspecto existem soluções interessante, como os newsgames, que usam o fato de que o ser humano aprende por interação.

Um argumento sobre a Pandemia

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No esforço para fazer frente à Pandemia, a Revista Piauí fez um trabalho incrível chamado No Epicentro. Em  conjunto com o google news initative e dados censitários do IBGE foi criada uma ferramenta para descrever o estrago provocado pela Covid-19 colocando os mortos uma perspectiva próxima.  Usando nossa própria localização para nos colocar no epicentro de um surto, oferecendo a perspectiva da doença a partir de nossa própria casa. Quando a estatísica passa a ter forma e localização precisa ela cria âncoras emocionais que aproximam o dado frio do leitor, resolvendo aquele problema de escala que é observado na informação ambiental, para reforçar o texto cria quase que uma narrativa para contextualizar os números. É uma estratégia simples e elegante que me lembrou o Nukemap. O resultado é bem impactante e mostra um poderoso aspecto retórico da visualização de dados.

Exercícios de aprendizado

Um exemplo de uso prático seria transformar ele num exercício escolar, imagino que funcionaria bem para alunos a partir do fundamental II. Já alunos a partir desse nível estão entrando no estágio operatório-formal do Piaget, o qual permite as abstrações mais complexas. Após entrar com seus próprios dados um aluno poderia fazer cálculos a partir do número de fatalidades ou mesmo uma redação. Trabalhos desse tipo seriam motivantes  e uma forma de produzir lições úteis para o futuro. O ser humano aprende por interação e criar um vínculo emocional torna esse aprendizado ainda mais profundo.

Conclusão

A revista Piauí está de parabéns pela iniciativa. Fico curioso em saber se alguém observou os dados de acesso, valeria a pena estudar impactos sobre quem usou a ferramenta. Isso demora tempo, é uma pesquisa longe do trivial. Porém, ideias como essa podem ser o futuro do jornalismo, mas já fico satisfeito se produzirem um impacto positivo em termos de conscientização. A luta contra a dissonância cognitiva em tempos de polarização política é árdua e, eventualmente, infrutífera, mas é preciso enfrentá-la.

 

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