Em defesa do susto infantil: 6 razões para crianças conhecerem histórias de horror


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Para alguns a idéia pode soar absurda, ainda mais nesses tempos em que tememos tanto pelo futuro. Porém, o autor de quadrinhos Greg Ruth defende que histórias assustadoras para crianças são boas e recomendáveis. Claro que o termo “criança” apresentado no artigo é amplo e, em termos de idade, eu diria que vai dos 4 até uns 10 anos. Uma das razões para ele escrever livros hoje em dia é porque Ray Bradbury conseguiu assustá-lo tão bem que incitou a chama da criatividade quando ele era um jovem leitor. A maior parte do seu trabalho é sobre temas assustadores e em vários casos haviam protagonistas infantis.  Em seu artigo “Porque horror é bom para você e ainda melhor para suas crianças” ele elenca seis razões, que seguem abaixo em mais uma resenha com muito de tradução. Lembro que aqui o tópico são histórias de terror escritas para crianças, com algumas sugestões de como aplicar isso em casa ao final do texto. Dica, discernimento é fundamental, especialmente para os pais. Entreterimento não vale um trauma. Por, fim, aviso que, em termos literários, horror e terror não são sinôminos.

1. A infância já é assustadora

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Era uma vez, um famoso autor de livros infantis, o americano Maurice Sendak, que interrompeu uma sorridente entrevistadora para mostrar que a infância não é apenas um passeio no jardim, algo lindo, colorido e adocicado. Também pode ser uma provação tão grande tornou o ato de escrever uma válvula de escape para ele. O que soa bem verdadeiro, considerando o histórico de Sendak: seus pais eram judeus poloneses e sua infância foi marcada pelas histórias de seu povo durante a segunda guerra mundial,  mesmo para quem estava em segurança nos EUA e só conheceu o destino de alguns parentes através de histórias.

Qualquer pai ou mãe, se forem atenciosos, pode observar que crianças vivem num mundo onde tudo é novo, desconhecido e, provavelmente, assustador. As coisas são grandes demais, maçanetas e cadeiras muito altas e os adultos são gigantes de vozes trovejantes que podem carregá-las. Para piorar elas tem pouca capacidade de fazer as coisas por si mesmas: até o simples ato de se vestir ou amarrar sapatos pode virar um labirinto. Até as percepções são diferentes, devido ao seu estado de desenvolvimento cognitivo, crianças tem uma noção de tempo diferente. Os “5 minutinhos” de um adulto podem parecer horas, especialmente se significar a separação dos pais. Qualquer pai que já deixou um filho no primeiro dia de escola ou creche conheçe aquele olhar aterrorizado de quem está sendo abandonado por quem deveria protegê-lo. Enfim, não é difícil para elas que um dia comum tenha lá seus toques de horror.

2. Poder para quem não tem

O efeito básico do horror sobre nós também é o sistema favorito de controle de multidões inventado pelos gregos e usado até hoje pela indústria cultural: a catarse.  Quem nunca saiu de um filme aterrorizante e foi confortado por uma caminhada mundana pelo estacionamento e ser lembrado que o mundo fora do cinema é o real. No caso das crianças, devido a diferença de estágio de desenvolvimento para os adultos, a catarse é ainda mais aguda. Se pensarmos numa história em que as crianças são tanto o objeto, o alvo do medo, quanto agentes sobrevivendo aos monstros. Bem.. então isso é algo mágico e talvez esse seja o mérito das histórias assustadoras infantis. Para deixar claro, o horror oferece um playground onde as crianças podem brincar com seus medos de um modo seguro que pode ensinar como sobreviver aos monstro e também como serem poderosas. É importante lembrar que brincadeiras arriscadas fazem parte do desenvolvimento infantil. Horror para crianças não apenas permite que elas leiam sobre criaturas aparentemente terríveis, mas também se vejam como protagonistas das histórias. A vitória do herói é a vitória delas, essa é a catarse. O monstro é quem quer que elas consideram monstruoso em suas próprias vidas. Uma criança terminando um livro, ou filme, assustador  pode ir embora após encarar um monstro e sobreviver. De certa forma ela está melhor preparada para o próximo vilão que surgir.

3. O horror é antigo, real e pode ensinar muito

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Os contos de fadas e outras histórias para crianças eram contados com objetivos didáticos e servem como inspiração até hoje, digo isso por experiência própria. Essas histórias servem para ensina-las a evitar locais perigoso e pessoas estranhas, como velhas suspeitas que moram em casas cobertas de doces. Convenhamos, João e Maria foi  foi uma idéia genial do irmãos Grimm para descrever como estranhos perigosos podem parecer simpáticos e atrativos. Existe um propósito prático nessas histórias: observe a variedade de ameaças que assombra os nossos passos e fique vivo. Para os tempos atuais elas podem soar terríveis, mas elas são de tempos mais perigosos.  Onde a mortalidade infantil era muito mais alta, muitas crianças não chegavam à vida adulta. O contexto mudou, as ameaças também e a Disney e a modernidade suavizaram as histórias, mas elas continuam fantásticas e loucas.

O horror também toca em algo muito profundo no ser humano. Próximo às nossas respostas instintivas de lutar ou fugir. Como espécie desenvolvemos uma necessidade evolutiva de temermos ameaças e escapar ou enfrentá-las para sobreviver. Nós existimos hoje porque nossos antepassados foram espertos e aprenderam com seus medos.

4. O horror confirma verdades secretas

Nesse pedaço o autor fez uma bela citação de Doctor Who, em um episódio em que quando o doutor conversa com uma aterrorizada criança de 9 anos e diz. “Sabe quando os adultos dizem que tudo vai ficar bem e não há nada para se preocupar, mas você sabe que estão mentindo” a criança concorda, o doutor pisca e diz “Vai ficar tudo bem”.

Nesse ponto uma das verdades essenciais do gênero foi tocada. Aquela que nos mostra que na escuridão podemos encontrar algo mais honesto do na luz, ou mesmo em nossos pais. As crianças tem mais consciência do que acontece do que costumamos perceber ou mesmo aceitar. É comum os adultos não compartilharem todos os detalhes da vida, para proteger a infância. Porém, muitas vezes esses detalhes aparecem em sussurros ansiosos, telefonemas estressantes ou discussões abafadas. Ainda assim,  elas percebem que algo está acontecendo, mesmo que de forma inconsciente. O agravante é que, limitadas à sua percepção como guia elas são deixadas para preencher as lacunas de informação com imaginação. E o que se imagina tende a ser muito mais terrível do que o real.

Assim, as histórias de horror oferecem um narrador honesto, que não vai se esquivar de falar sobre monstros, medos e das coisas assustadoras ou desagradáveis que se escondem em lacunas de informação. O simples fato de contar essas histórias mostra a disposição de se juntar às crianças em seus pesadelos, trazê-los à vida e depois subvertê-los e vencê-los (voltando ao ponto 2). As crianças adoram você por isso, porque nesse momento estamos compartilhando um segredo com elas e elas passam a perceber que o medo pode ser emocionante e, consequentemente, divertido.

Segundo o autor o resultado é que essas histórias assustadoras criam um senso de confiança que, eventualmente, não será obtido através dos pais. Justamente porque pais tentavam confortar, afastar as crianças de coisas assustadoras. Por outro lado as histórias de terror mostram que essas coisas existem e podem ser encaradas.

5. Compartilhar histórias de horror une as pessoas

Existe um aspecto social no ato de se assistir ou contar essas histórias, como a roda de histórias em frente a uma fogueira ou crianças em grupo falando de um livro de terror. Uma das coisas que eles fazem depois de assistir uma história desse tipo é comparar as partes que gostaram mais e os sustos que tiveram. Os adultos também, claro. São como veteranos compartilhando lembranças de uma batalha ou caçadores pré-históricos descrevendo a caçada do dia em torno da fogueira. A experiência compartilhada, os gritos e a adrenalina funcionam como um argamassa que une alguns dos momentos mais divertidos e menos frágeis da infância. Passar por isso junto de alguém significa se sentir menos sozinho e solidão é a base de vários medos infantis.

6. Escondidos abaixo dessas histórias estão os fatos da vida

Crescer é assustador, doloroso e, às vezes, violento. Seu corpo pode agir como um estranho e em certos momentos se tornar algo feral e terrível. As histórias de lobisomem mostram isso. Se tornar solitário, seus parentes não te entenderem mais e o mundo parecer algo incompreensível, como uma matéria nova, é algo que pode ser visto na história de Frankenstein. O desejo sexual é intimo, tem algo de perigoso e potencialmente ameaçador, como visto em Drácula.  Nesse aspecto a série “Jogos Vorazes”  por ser uma metáfora para um cenário de inferno darwinista, como as ansiedades do ensino médio. Assim, o gênero do horror pode criar uma ambiente para se aprender a lidar com o medo. Bem como a literatura em geral pode oferecer um reflexo da vida.

Sobre como mostrar o horror para crianças e os limites necessários

É claro que o medo não é a melhor coisa do mundo. Mas ele existe, não vai embora e nós somos eventualmente obrigados da encará-lo, como um fato da vida. Negar isso apenas oferece mais espaço para os medos se tornarem mais arraigados. Negar isso rouba a oportunidade e aprender a superá-lo. Quanto mais ignoramos coisas assustadoras, maiores e mais assustadoras elas se tornam.

Criar histórias de horror para crianças requer uma mudança de abordagem, para se adequar ao público. Na visão do autor, violência e sanguinolência podem ser atalhos ruins, preguiçosos e, eventualmente, mal executados para tornar uma história assustadora. Abrir mão desses elementos e usar outras ferramentas mais elegantes, como clima,  ritmo e violência sugerida pode criar histórias interessantes e evitar traumas. Fazer histórias para assustar crianças acertando a dose e algo difícil.  É preciso ser mais criativo e ir além dos clichês.

Para leitores jovens o protagonistas precisa chegar à segurança mais cedo do que nas histórias para público adulto. Existem certos temas que requerem experiência e um bom contador de histórias deve conhecer e entender seus leitores. Portanto, é preciso trabalhar as coisas de acordo com a criança, não existe receita pronta e cada um tem seu limite.

Por exemplo, no artigo, o autor descreveu rapidamente a experiência com seus dois filhos: o de 11 já está liberado para ver conforme sua preferência, enquanto o mais novo só vai poder fazer isso aos 14, em princípio. Isso ocorre  justamente porque são pessoas diferentes. Ambos gostam de coisas assustadoras, dentro de seus próprios limites individuais. Creio que é algo comum uma criança ver algo que passou da conta e tanto ela quanto seus pais devem se lembrar bem dos pesadelos que continuaram semanas depois, na melhor das hipóteses.

Assim, na dúvida o autor sugere optar pela cautela e eu concordo com ele. Afinal, não se pode desver algo. Existe um abismo entre assustar e aterrorizar, são verbos bem diferentes e é importante não forçar limites. Respeitando isso o assustador pode ser uma experiência positiva e poderosa.

Minhas Sugestões

Como diz o autor as coisas vão variar não apenas de acordo com a criança, mas com a idade dela. O que era assustador aos 6 pode ser divertido aos 8. Abaixo seguem algumas sugestões, baseadas em minha experiência pessoal.

  • O estranho mundo de Jack e A Noiva Cadáver, ambos de Tim Burton. Um craque do gênero.
  • Coraline e O Menino do Cemitério (mais para infanto-juvenil) de Neil Gaiman
  • Toda a série Harry Potter, de J. K. Rowling. É fantasia, mas tem seus momentos de horror para uma criança. Um dos efeitos mais assustadores que já observei em um jovem e querido leitor foi a forma como os Dursley tratavam Harry. Um exemplo flagrante do ponto 6.
  • Gravity Falls, de Alex Hirsch série de desenho animado disponível no Netflix. Eu vi funcionar bem para crianças a partir de uns 7 anos e segurei antes disso.
  • Hilda, desenho animado no Netflix e quadrinhos no original de Luke Pearson. Outra fantasia com toques de horror.
  • Também existe uma produção nacional, mas confesso que ainda conheço pouco e preciso pesquisar melhor.

Referência

Why Horror is Good For You (and Even Better for Your Kids)  de Greg Ruth, publicado em Tor.com em 2014. Último acesso em julho de 2020.  Todas as imagens dessa resenha são dele e vieram do artigo citado.

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