Systema: conhecendo uma arte marcial russa


systema-logoDurante o ano de 2018 treinei uma arte marcial russa, segue abaixo um relato da experiência, considerando origens e características, algumas controvérsias sobre o tema na internet e as eventuais efeitos que observei. Admito que meu conhecimento do assunto é restrito e a análise abaixo é resultado do que pude perceber da minha prática nesse período e algumas pesquisas na internet citadas nos links ao longo do texto.

Origens

O hoje é chamado Systema  remonta ao século X e muitas de suas técnicas teriam sido adaptadas dos antigos guerreiros eslavos. Essas técnicas foram estudadas e adaptadas para as forças militares soviéticas e russas. Por isso que ele também é conhecido como “a arte marcial da KGB”, O que não é uma afirmação errada, apenas um tanto incompleta.

As raízes militares levaram à uma visão pragmática das necessidades de defesa pessoal. Aos movimentos tradicionais parecem ter sido incorporados estudos sobre a anatomia humana e comportamento para aumentar a efetividade dos movimentos. O escopo é bem amplo, abordando socos, chutes, manipulação de articulações, combate armado e desarmado, uso de armas improvisadas, luta de chão etc.

As características

Se existe uma palavra para caracterizar essa arte seria “fluidez”. Como o Magno Cerqueira, meu instrutor, gostava de dizer: se as artes marciais fossem em elementos o Systema seria a água (e olha que ele não assistiu avatar). Não existem posições e movimentos fixos, as manobras seguem o caminho mais curto e devem ser tão simples quanto possível. Seguindo essa metáfora elemental do Systema  ele fez uma caracterização particularmente interessante, destrinchando os diversos aspectos dessa água:

  1. Sólido, algo pesado como o gelo,  as ondas do mar e a água que cai da cachoeira: ilustrando os socos, cotoveladas, joelhadas, chutes, etc. – também conhecidos como  “strikes”;
  2. Líquido: amorfo, como a água, mudando de forma de acordo com o ambiente, o oponente e a situação, especialmente relevante no combate próximo com manipulação de articulações (cotovelo, pulso, joelho);
  3. Gasoso: seria o efeito de se “evaporar”, na frente do oponente, se mantendo em constante movimento, o que torna mais difícil ser atingido ou imobilizado por um atacante.

Nesse aspecto, confesso que tive sorte em termos de instrutor porque o Magno também é terapeuta holístico. Se existem diversos arquétipos de mestre: como o atleta, o soldado e o guru. O meu preferido é o curandeiro. Aquele que tem tanta capacidade de arrumar o ser humano quanto de detoná-lo. Isso dá ao instrutor dá uma visão detalhada do que o corpo humano pode fazer, onde acertar, o que pode ser exigido do aluno e quais os limites. No caso, o Magno até já alinhou a minha coluna, com impacto no desempenho durante a aula e eventualmente ainda faço consultas com ele envelhecer é @#$%.

cruz-systema-brazil-768x746A aprendizagem está baseada em 4 pilares: respiração, relaxamento, estrutura e movimento. Esses pilares iniciais que levam a outros, descritos nos círculos internos, e assim até chegar ao domínio das técnicas. O que também reforça o aspecto holístico da arte russa.

Uma das primeiras coisa a se desenvolver é o controle da respiração e que impacta no desenvolvimento dos outros pilares, como o relaxamento. Esse é o que eu considero o mais difícil, por ser totalmente contraintuitivo. Como ficar relaxado em um embate físico, uma situação tensa por natureza? Assim, não é exatamente uma arte fácil de ser aprendida, pelo menos não foi para mim.

Geralmente artes marciais trabalham numa estrutura didática bem específica, com exercícios fixos, movimentos detalhados e muita repetição para internalizar esses movimentos para transformar-los em reflexos. Em essência, acredito que uma arte marcial é um condicionamento de reflexos, um adestramento para que o corpo reaja de forma esperada ao receber um estímulo. Essa seria a base da aprendizagem.

Porém, esse tipo de rigidez é contrária ao que se deseja obter no Systema focado na fluidez e capacidade de adaptação a diferentes situações. Se a maioria das artes trabalha para levar suas posturas e movimentos para o inconsciente essa arte marcial me parece trabalhar na direção contrária: trabalhando para expandir a consciência dos movimentos para abarcar os seus pilares até internaliza-los.

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Aprendizagem

Assim, a aula com frequência rende um ambiente bem diferente das artes marciais tradicionais. Não há gritos e são incomuns os movimentos bruscos, chega a parecer uma aula de tai chi. O que mais se ouve é aquele leve assovio de pessoas tentando controlar a respiração. O foco é se manter respirando e em movimento lento, constante  e usando tão pouca força quanto possível. Algo como uma meditação em combate ou uma mistura de MMA com Yoga.

A baixa velocidade tem dois objetivos: reduzir o risco de acidentes e aumentar a consciência corporal. A velocidade pode ser enganadora, cria uma impressão de maestria, mas faz com que os erros sejam ignorados. Se a velocidade é baixa, as exigências de precisão e refinamento técnico se tornam mais altas.

Outro efeito é um aprendizado duplo: quem golpeia está aprendendo como atacar, mantendo sua respiração e equilíbrio, enquanto quem está recebendo o golpe aprende a perceber os movimentos musculares que antecipam o ataque. Além de aprender a receber um ataque, controlar a respiração e se manter relaxado mesmo lutando, o “alvo” vai se acostumando à idéia de ser atingido, algo que invariavelmente vai ocorrer numa situação real. Serve para reduzir o dano e, ao mesmo tempo, ensina a encontrar aberturas para o contragolpe. Receber o golpe relaxado também facilita a absorção do impacto e reduz o dano, ainda que o reflexo ntural seja justamente o contrário,  contrair o músculo. Isso ilustra bem a diferença entre simples e fácil nesse aprendizado.

Por outro lado, se a velocidade é baixa é esperado e exigido que o golpe acerte o alvo: seja uma cabeça, órgão (rim, genitais, diafragma, nervos) ou articulação. É preciso acertar pontos certos para obter o máximo de dano com mínimo de esforço, permitindo que uma pessoa fraca consiga enfrentar alguém mais forte. Psicologicamente isso também é interessante para suavemente baixar as inibições das pessoas civilizadas em atingir outro ser humano. Algo especialmente interessante para o ensino de defesa pessoal.

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foto: Jen Osborne

Dessa forma, as aulas tem algo de aprendizagem baseada em experimentos. Os exercícios funcionam como experimentos para os alunos usando o colegas como objeto de estudo. O foco está mais em desenvolver habilidades e os pilares do Systema do que em dominar movimentos específicos. Duas pessoas fazendo o mesmo exercício podem reagir de forma aparentemente diferente e, dentro da lógica dessa arte, estarem fazendo o certo. O que demanda habilidade do instrutor para avaliar os alunos.

Seguindo um definição proposta pelo Magno, é como aprender a falar:

  • você começa construindo sílabas, os movimentos básicos;
  • depois começa a formar palavras, as combinações de movimentos, como manobras e defesas;
  • então se avança para as frases; manobras, defesas, golpes e contragolpes e, por fim,
  • fazer poesia, criar movimentos completos que vão do ataque, defesa, contragolpe e finalização.

Como ele gosta de dizer: é marcial, mas também é uma arte, uma forma de expressão. O praticante cria a partir do que aprendeu. Algo que eventualmente vai ser pessoal e único para aquele momento. Você começa balbuciando, mas o objetivo final é fazer poesia. Se compararmos com outra arte, como a música, tudo se inicia nas notas, depois vai para os acordes até a música solo. Tudo isso para a improvisação máxima: a luta. Creio que esse é um efeito colateral de ter um instrutor que também é músico.

Os efeitos da prática

No meu tempo de prática acredito que consegui desenvolver os seguintes pilares: o relaxamento melhorou pouco, mas foi um avanço se considerar que sou alguém “duro”, de musculatura pouco flexível; na estrutura melhorou e me deixou mais equilibrado; mas acredito que a minha maior melhora foi na respiração. O ganho de controle da respiração teve efeitos bem interessantes. Além de me cansar menos, por reduzir o gasto de energia respirando, esse controle fez com que eu ficasse menos ansioso, inclusive nas lutas. Esse ganho tornou possível avaliar a situação, manobrar e criar estratégias, vi algumas filmagens de treinos e percebi perfeitamente como a minha respiração ficou mais ritmada e eficaz. É algo sutil e ao mesmo tempo incrível. 

Outra vantagem foi que movimentos como chaves de articulação e derrubadas passaram a ser menos desagradáveis porque estou menos tenso: a dor das chaves ficou mais suportável e as quedas menos doloridas. Na verdade eu ficava tenso devido à ansiedade em saber o que iria acontecer. Hoje em dia estou tão acostumado a soltar o ar para reduzir a tensão  que já me flagrei expirando, esvaziando o pulmão para reduzir a dor, quando estava  assistindo à luta de outra pessoa. Mesmo em situações de trabalho percebi a relação entre  controle da respiração e da ansiedade. A antecipação da dor pode ser mais assustadora que a dor em si. Isso abre espaço para se treinar mais e de forma mais intensa ao mesmo tempo que o risco de ferimentos diminui. 

Seguindo essa linha, ao mesmo tempo que se ganha mais consciência corporal do próprio corpo passamos a entender melhor a movimentação do adversário. É algo como um letramento em expressão corporal. É possível perceber melhor os movimentos do adversário, quando ele vai socar ou chutar, em que pontos ele está com a guarda fechada ou aberta e se uma chave está realmente imobilizando o adversário pela forma como seus músculos, respiração ou tendões reagem.

Controvérsias

Ainda que minha amostra seja promissora, observei que o Systema não é exatamente uma unanimidade na comunidade internacional de artes marciais, pelo menos na internet. Existe quem o defenda e quem o deteste. Não concordo com essa opinião, mas acho que ela não deve ser ignorada. Alguns usuários do fórum Reddit fizeram uma excelente síntese das razões dessa controvérsia. O que ajuda a entender porque o Systema atraiu a ira de algumas pessoas.

  • Não competitivo: Como o foco é defesa pessoal, o Systema é essencialmente não competitivo. A ausência de um “teste” ou um indicador de qualidade como as competições é considerada um sinal de fraqueza por alguns. Porém não vejo esse questionamento com outras artes voltadas para defesa pessoal, como o krav maga;
  • Ausência de níveis: Não há uma estrutura de graduação, como o sistema de faixas de outras artes marciais, ainda que o Systema não seja um caso único. As pessoas dentro do grupo sabem quem é experiente ou bom pela própria prática em consciência corporal e letramento comentada acima. Porém isso não fica visível para quem está fora.
  • Formação de instrutores ambígua: Creio que esse é um efeito da ausência de graduações, é difícil separar o excelente instrutor de outro nem tanto. Alguns participantes do reddit sugerem que existe um problema de controle de qualidade na formação dos instrutores, o que tornaria difícil separar o joio do trigo. Me parece difícil expandir algo pelo mundo afora de forma rápida sem arriscar a qualidade.
  • Execução lenta – Como o foco é defesa pessoal, o que significa o máximo de estrago nas partes mais frágeis do corpo do adversário, é frequente que os exercícios sejam feitos em baixa velocidade. Alunos machucados não treinam. Ainda que seja uma forma lógica de equilibrar a necessidade de treino com o risco de dano muita gente acredita que essa é a única forma de treino praticada no Systema.
  • Desenvolvimento da sensibilidade –  Uma parte do treinamento envolve desenvolver sensibilidade física e psicológica, o que demanda exercícios específicos, como aqueles para “soltar” o corpo. Esses exercícios servem para desenvolver habilidades que depois podem ser aplicadas na forma de golpes, contragolpes ou esquivas. Além de permitir um leitura mais precisa do adversário. Porém, essa é uma habilidade difícil de observar e mensurar, o que pode levar alguns a considerarem que essa habilidade não existe ou é pouco útil.
  • Sem técnicas fixas – Várias artes marciais tendem a ensinar através de séries de exercícios, movimentos fixos que o aluno vai aprender e dominar com a prática. Não existe o “soco fulano” ou chute “beltrano”. Os pilares são ensinados através de exercícios que podem parecer ridículos, inúteis ou mesmo perigosos se forem vistos fora de contexto. É uma questão de estratégia didática, certos exercícios servem para desenvolver habilidades necessárias, servem para fazer o aluno dominar primeiro esses pilares antes dos exercícios de aplicação.
  • Foco amplo – O que alguns detratores poderiam chamar de ausência de foco. Alguns instrutores descrevem Systema como mais do que uma arte marcial.  Assim, seu modo de ser e pensar seria válido para qualquer faceta da vida, não existiria um delineamento de onde ele começa e termina. O que não seria um exagero, apenas uma generalização dos seus pilares para outra áreas da vida além da arte marcial. Isso é algo que para algumas pessoas mais desconfiadas soaria como nebuloso ou uma confusão conveniente. O que pode ser mais um estranhamento cultural. Afinal, um monge shaolin provavelmente não consideraria esse foco amplo como algo estranho.

Conclusão

A maioria das controvérsias me parece consequência das peculiaridades próprias do dessa arte ou o eventual trabalho ruim de algum instrutor. Talvez eu tenha tido sorte nesse aspecto. De qualquer forma as controvérsias sobre qualidade desse ou daquele instrutor existem em outras artes marciais, a internet está repleta de exemplos.

Apesar de minha experiência curta e certamente superficial limitar o meu conhecimento sobre o assunto, o Systema me parece funcionar bem como arte marcial em si ou como complemento à outras artes.  Eliminar as tensões do corpo de forma consciente é um exercício tão simples quanto difícil. Porém, o exercício de controle e consciência corporal oferecem ganhos que compensam com vantagem as eventuais dificuldades.

Ficam meus agradecimentos ao Magno Cerqueira pela oportunidade de conhecer o Systema e algumas sugestões para esse texto.

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