Criatividade em queda


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Fonte: Curso Creativity Guide da Udemy.

Introdução

Essa é mais uma resenha descuidada, nesse caso do artigo As Children’s Freedom Has Declined, So Has Their Creativity com uma boa dose de tradução livre. O original é de autoria do Dr. Peter Gray, professor e um firme defensor do livre brincar na infância,  com rigor científico. O artigo foi publicado na Psychology Today em setembro de 2012. Lembo que no caso, a idéia de criatividade como descrita abaixo não é restrita à trabalhos artísticos, mas também é considerada como uma competência essencial para o século XXI.

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Uma das coisas que as democracias ocidentais se orgulham é da criatividade de seu povo. Os americanos, por exemplo, sempre se orgulharam de sua engenhosidade, da capacidade de inovar e inventar. No mundo nos negócios, na academia, artes e em outros lugares criatividade é considerada um diferencial americano. Em uma pesquisa recente da IBM, 1500 CEO’s identificaram criatividade como um dos melhores preditores de sucesso futuro [1] . Alguns consideram que isso está ligado ao próprio processo de desenvolvimento do país, desde os tempos coloniais. Porém, como observado por uma recente pesquisa do professor Kyung Hee Kim, professor de educação no College of William and Mary, isso pode estar mudando, para pior[2]. E as escolas podem ter sua uma parcela de responsabilidade por isso.

Assim, o professor Kim analisou uma bateria de testes desenvolvidos para medir a criatividade, o teste de Torrance para pensamento criativo. O teste vem sendo coletado em crianças do jardim de infância até o final do fundamental há décadas. E as análises do professor mostram que os índices começaram a declinar em algum ponto entre 1984 e 1990, uma tendência que continua.

Como medir a criatividade

Você deve estar pensando como a criatividade pode ser avaliada. Por definição qualquer teste com questões que tem apenas uma resposta certa ou apenas um caminho aceitável para solução não é um teste de criatividade. O teste foi desenvolvido por E. Paul Torrance no final dos anos 50 na universidade de Minnesota. Logo após o lançamento do satélite soviético Sputnik o governo americano estava preocupado em identificar e reforçar talentos entre os estudantes americanos para não ficar atrás dos russos, que foram erroneamente considerados à frente dos americanos no campo da inovação científica.

Enquanto a maioria dos colegas de Torrance focou nas medidas comuns de inteligência  ele escolheu a criatividade. Seu trabalho anterior com pilotos de caça da Força Aérea Americana o convenceu de que a criatividade era a variável central subjacente à realização pessoal e capacidade de adaptação a condições incomuns[3]. Algo que se adequa muito bem as exigências profissionais do século XXI. Ele desenvolveu um teste em que as pessoas fossem apresentadas a diferentes tipos de estímulo e deveriam fazer algo interessante e novo com eles, ou seja, criativo. O resultado foi o conjunto de testes de agora leva o seu nome. Os resultados são medidos incluindo qualidades como originalidade, significado e humor.

A melhor evidência de que o teste Torrance realmente mede o potencial criativo veio de outras pesquisas que mostraram correlações fortes e estatisticamente significativas entre os resultados de participantes que fizeram o teste na infância e os adultos que se tornaram anos depois[4]. Um artigo observa que crianças que tiveram resultados altos nos testes se tornaram adultos que produziram mais livros, danças, shows de rádios, exibições de arte, programas de computador, campanhas publicitárias, inovações em TI, composições musicais, políticas públicas (planejadas e implementadas), posições de liderança e prédios projetados do que aqueles participantes que tiveram resultados inferiores, o que ilustra bem como a criatividade tem aplicações variadas.

Assim, o teste parece ser um bom indicador de sucesso na vida. O Dr. Gray não se furta em dizer que o considera como o melhor já inventado. De fato, me parece um indicador melhor do que testes de QI, notas de escola, exames seriados como ENEM ou GPA (dos Estados Unidos) ou análise por pares. Assim, esse comprovado declínio generalizado da criatividade entre crianças em idade escolar é um motivo de preocupação. O próprio professor Kim e outros pesquisadores chamam isso de crise de criatividade [5]. O que não deveria ser supresa considerando que, por décadas, a sociedade vem suprimindo a liberdade das crianças e a escola tem sua parcela de culpa nisso.

A queda

Segundo o professor as crianças estão se tornando menos vigorosas, expressivas, imaginativas, perceptivas menos capazes de conectar fatos aparentemente irrelevantes, perdendo capacidade de síntese e de ver as coisas de perspectivas diferentes. Ele acredita que todos os aspectos da criatividade abordados pelo teste estão em declínio. Porém a maior queda é na medida chamada Elaboração criativa que avalia a habilidade de pegar uma idéia particular e expandi-la de um modo inédito e interessante, especialmente entre 1984 e 2008. Nesse período 85% crianças de 2008 tiveram resultados piores que a média das crianças de 1984, em todas as idades avaliadas. O que comprova que essa é uma diferença significativa.

A criatividade é nutrida pela liberdade e prejudicada pelo monitoramento contínuo, avaliação, controle por adultos e pressão por adequação que restringem a vida das crianças hoje em dia. Ao contrário das provas, no fundo real poucas questões tem apenas uma solução certa. Por isso a criatividade é crucial para o sucesso no mundo real. Porém mais e mais estamos submetendo as crianças a um sistema educacional que assume que existe apenas uma resposta certa para cada questão e apenas uma solução para qualquer problema. Um sistema que crianças, e seus professores, pela ousadia de tentar caminhos diferentes. Também estamos privando as crianças de tempo livre fora da escola para brincar, explorar, se entediar, superar o tédio, falhar, superar o fracasso. Essas são as coisas que as crianças precisam fazer para desenvolver seu potencial criativo.

Conclusão (a minha)

Vou me arriscar a ser óbvio em dizer que concordo com a importância da criatividade, especialmente ainda que seja suspeito por fazer carreira como designer gráfico. O que achei interessante no estudo foram as bases sólidas, para mostrar que esse declínio da criatividade não é uma mera impressão e a tendência continua. Para tanto ele usou do gosto americano pelo método científico que, entre outras coisas, se manifesta por seu gosto por medir coisas. Americanos adoram desenvolver indicadores para medir as coisas mais variadas, conseguindo até mesmo criar um instrumento para medir a criatividade humana em grandes populações.

É importante observar que esse instrumento foi validado pela análise da vida real. Uma das vantagens de se fazer pesquisas de longo prazo e uma ilustração de como estudos na área de educação podem ser complicados, Os resultados que importam podem levar décadas para serem obtidos. Assim, é preciso admitir que o professor Kim tem um argumento forte ao considerar a queda da criatividade infantil. E acho bem provável que o Brasil esteja seguindo uma tendência parecida. A qual pode ser ilustrada por outros exemplos: como a difusão de medicamentos para melhorar o desempenho escolar e uma excelente descrição de Sir Ken Robinson no TED sobre o papel das escolas em prejudicar a criatividade de seus alunos.

Nos diversos fatores que limitam a criatividade me lembrei muito das conversas da antiga professora de Jardim de Infância do meu filho. A Rafaela sempre falava sobre a importância do tédio para o desenvolvimento infantil e o desenvolvimento da criatividade. Me parece que a ciência e as recomendações  do Dr. Gray sobre promover e manter a criatividade estão de acordo com as idéias dela e da escola. Mudar de rumo e se tornar capaz de instigar a criatividade para atender as necessidades de era movida por inovação será um dos grandes desafios da escola atual. Um desafio no qual escolas baseadas na pedagogia waldorf, montessori e outras que incentivem o livre brincar e a autonomia estão especialmente preparadas para enfrentar

Referências (do autor)

[1] IBM 2010 Global CEO Study: Creativity Selected as Most Crucial Factor for Future Success. http://www-03.ibm.com/press/us/en/pressrelease/31670.wss.

[2] Kyung Hee Kim (2011). The creativity crisis: The decrease in creative thinking scores on the Torrance Tests of Creative Thinking. Creativity Research Journal, 23, 285-295.

[3]  Garnett Millar, Christine Dahl, and John Kauffman (2011). Testing the whole Mind—educating the whole child.” Illinois Association for Gifted Children Journal, Spring, 2011 issue.

[4] Mark A. Runco, Garnet Millar, Selcuk Acar, & Bonnie Cramond (2010) Torrance tests of creative thinking as predictors of personal and public achievement: A fifty-year follow-up.  Creativity Research Journal, 22, 361-368.

[5] Mo Bronson & Ashley Merryman (2010). The creativity crisis.  The Daily Beast, July 10, 2010.  The Daily Beast, July 10, 2010. http://www.thedailybeast.com/newsweek/2010/07/10/the-creativity-crisis.html.

[6] See: Mark A. Runco, Garnet Millar, Selcuk Acar, & Bonnie Cramond (2010) Torrance tests of creative thinking as predictors of personal and public achievement: A fifty-year follow-up.  Creativity Research Journal, 22, 361-368. Also:  Kyung Hee Kim (2008). Meta-analysis of the relationship of creative achievement to both IQ and divergent thinking scores.  Journal of Creative Behavior, 42, 106-130.

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