A idéia surgiu de uma conversa com um colega, o Samuel, uma pessoa que eu encontro pouco mas de nossas raras conversas já surgiram idéias ótimas. No caso, estávamos falando sobre jogos, especialmente sobre o RPG e ele levantou sobre como deve ser complicado conduzir uma partida. Afinal, não existe planejamento perfeito e uma das características de um jogo é justamente o seu aspecto imprevisível. O jogo é resultado da interação entre jogadores, regras e desafios do jogo. Só a mudança de pessoas já pode tornar a experiência totalmente diferente. Para ilustrar esse grau de imprevisibilidade: certamente as mesmas pessoas jogando uma aventura duas vezes não irão jogar igual.
Isso acontece porque o desenvolvimento da partida depende da reação do jogador. Algo não muito diferente de várias situações profissionais. Certos trabalhos precisam da interação e da prática para ocorrerem. Como disse um certo general prussiano “nenhum plano sobrevive ao contato com o inimigo“.
Assim, narrar um jogo de RPG pode ser uma excelente forma evitar a tentação da microadministração. Porque uma experiência em que o jogador sente que não tem liberdade para fazer o que quer dificilmente será considerada uma boa diversão e uma boa diversão é o objetivo principal de uma sessão de jogo.
E o que é RPG?
Se você já souber seu nerd pule esse pedaço e vá para o próximo item.

Caso contrário, RPG é a sigla de Role Playing Game ou jogo de interpretação de personagens. Essencialmente é um jogo com regras a serem seguidas e objetivos a serem cumpridos. Mas também é a construção coletiva de uma história na qual os jogadores são personagens e uma pessoa atua como diretor, também conhecido como narrador ou mestre. Esse narrador arbitra a aplicação das regras, conduz a história e faz a atuação de todos os personagens que não sejam os dos jogadores.
Existem versões eletrônicas, mas aqui o foco são os jogos com lápis, papel, dados, livros e, principalmente, imaginação. O MMORPG e outras versões digitais não estão sendo consideradas porque a gestão de regras e história é terceirizado para o computador. Enquanto no jogo de papel e dados é preciso esse mestre ou narrador. Essa pessoa, em especial, pode estar estar desenvolvendo algumas habilidades gerenciais bem interessantes com a prática de narrar jogos.
Mestre, narrador, juiz, diretor: um pouco de todos
Portanto, sem uma máquina para fazer todos os papéis que não são dos jogadores é preciso um ser humano fazendo todos esses papéis para que o jogo ocorra. É ele quem faz o sistema do jogo “rodar” para os jogadores interagirem entre si e o resto do ambiente.
Por mais que exista um planejamento básico do que irá ocorrer é preciso lidar com o desconhecido, é preciso aceitar e lidar com a incerteza. Como dizia o Ian Bogost em Persuasive Games: um jogo é um sistema que depende do input do jogador, que mesmo atuando de acordo com as regras tem um razoável grau de liberdade. que também significa imprevisibilidade. Consequentemente o planejamento deve ser flexível o suficiente para lidar com isso. E como surgiu na minha conversa com o Samuel, isso lembra o desenvolvimento de projeto e de habilidades gerenciais e Gestão.
Habilidades Gerenciais e de Gestão
Essas são habilidades relacionadas a capacidade de envolver as pessoas em torno de um projeto, se relacionar com equipes e extrair o melhor delas. Alguém com essas habilidades deve ser assertivo e ao mesmo tempo ter sensibilidade para não gerar conflitos desnecessários na equipe. Essas habilidades se refletem na gestão.
Apesar de existir uma grande interseção entre gestão e gerência existem algumas diferenças. É esperado que o gestor exerça seu papel de liderança de forma mais criativa e habilidosa, seu foco é mais amplo enquanto o do gerente é mais técnico.
A gestão possui princípios fundamentais como incentivar a participação, estimular a responsabilidade e autonomia dos funcionários, mas de forma sistemática e obedecendo certos métodos . O objetivo principal é atingir todos os objetivos da organização usando de forma eficiente o conhecimento e habilidades dos participantes. É preciso conhecer conhecer os processos da organização num aspecto mais amplo. Se o gerente tem foco no operacional e no tático. O gestor também tem que alcançar o estratégico. Existe gente que tem talento natural para esse papel, mas ele também pode ser desenvolvido. De qualquer forma é mais uma habilidade a ser desenvolvida pela prática do que um conhecimento a ser aprendido de forma passiva.

Assim como os projetos, um jogo de RPG é uma atividade que lida com o imprevisível, ao mesmo tempo que é focada num resultado: entreter seus participantes, produzindo uma experiência desafiadora e agradável. O exercício desse foco no resultado pode ser uma excelente ferramenta para se afiar as habilidades de gerência, para qualquer um dos níveis.
A opinião dos profissionais
Para observar se essa relação entre a narrar (ou mestrar) e a habilidade gerencial nada melhor do que pedir a opinião de quem faz isso todo dia. Assim, eu resolvi pedir procurei pessoas que trabalham em cargos de liderança e tenham experiência narrando jogos de RPG. As respostas seguem abaixo, minha idéia foi ser tão fiel quanto possível. Detalhe, todos eles concordaram que a relação existe.
Para Henrique Jucá a prática de mestrar ajuda principalmente na exposição dos cenários e possibilidades.
Bruno Cunha trabalha no setor público, com um pequeno grupo de servidores e também como coordenador de um cursinho popular. Ele observa que o RPG agregou diversas habilidades em seu trabalho. Para ele o principal seria a capacidade de mediação. Uma habilidade afiada pela prática em mediar conflitos das mesas de jogo, como fazer fluir uma conversação entre pessoas de perfis extremamente diferentes. Uma habilidade que ele considera muito útil, no trabalho sempre se precisa de mediação. No cursinho, um trabalho voluntário, compatibilizar jeitos diferentes de ser na mesma equipe é fundamental. Outro ponto foi a assertividade, essa é uma competência desenvolvida como mestre que ele considera fundamental ao lidar com equipes. Ser mais claro e direto ajuda o grupo a fluir tanto no RPG quanto no trabalho.
Bruno viu outro ganho: o desenvolvimento da extroversão. Um desafio interessante para quem se considera um introvertido. Mestrando jogos ele alega que aprendeu a lidar com o fato que tem gente que se retrai e gente que se expande. Tem um jeito de lidar com os dois para que todo mundo jogue e que não fique tudo na mão do expansivo. No trabalho isso é fundamental, não engajar um introvertido é potencial desperdiçado.
Janary Damacena afirma que gosta de estar bem preparado para qualquer situação em jogo, é preciso um preparo para lidar com situações adversas e aprender a exercitar gerenciamento em outros ambientes. Segundo ele, isso se deve a praticar a antecipação das inúmeras possibilidades que podem ocorrer no jogo e a necessidade (do mestre preparado) em ter uma resposta satisfatória ou, pelo menos, uma ideia de como agir.
Para Josenilto Junior organizar o jogo de forma que um grupo de personagens com perfis muito diferentes consigam trabalhar juntos não é muito diferente de fazer um grupo de funcionários trabalharem para um bem comum.
Sylvio Vasconcelos é psicólogo e muitas vezes prepara intervenções para os seus clientes. Quando eles vêm à sessão, às vezes acontece tudo em desacordo com o programado. Mestrar também tem dessas situações, e a experiência com os jogadores facilitou bastante sua competência em adaptação à situações inesperadas no consultório.
Anderson Riedel acredita que a habilidade de reconhecer cada indivíduo, suas deficiências e potenciais e trabalhar em equipe pode ser desenvolvida ao mestrar. A atitude de coordenar projetos e histórias também, mantendo foco em metas e resultados. Um exemplo dele foi o trabalho da ONU, que há anos realiza um RPG simulando situações de conflito para jovens em treinamento.
José Marcelo percebeu as seguintes vantagens em sua experiência profissional:
- Contexto: Parte do trabalho do Mestre é contextualizar com frequência os players tanto do ambiente (estático), quanto dos acontecimentos (dinâmico). Na Gestão de Pessoas, isso ajuda a mostrar aos colaboradores o ambiente onde estão inseridos e as causas e consequências das ações no trabalho.
- Evolução profissional: o Mestre deve sempre orientar o player em como evoluir seu personagem. Mesmo que, após as orientações, ele busque algo que não agregue às suas potencialidades e ao grupo. Neste caso, a intervenção do Mestre é mostrar as consequências da escolha durante o curso da aventura. Da mesma forma, o líder deve agir como coach, orientando seus empregados para sempre buscar oportunidades para “subir de nível”. Uma das maiores satisfações que ele disse obter em 2018 foi testemunhar a evolução de um colaborador, que era seu substituto interino e foi aprovado para um função de gerente executivo em outra área.
- Esforço e recompensa: Ninguém em RPG consegue tesouros ou subir de nível sem se arriscar. Mas, não se pode entrar em um dungeon confiando simplesmente na própria habilidade, sem o mínimo de planejamento. Da mesma forma, no trabalho, o líder mostra para o grupo os objetivos a serem alcançados e planeja os passos de cada encounter que leva ao sucesso esperado.

Conclusão
Com base nas opiniões apresentadas acredito que a prática de narrar jogos de RPG é um exercício salutar de habilidades de gerenciais para se lidar com pessoas de diferentes perfis e fazer com que elas se foquem em objetivos específicos. Se numa partida esse objetivo pode ser conquistar um tesouro ou sobreviver à uma caverna de monstros enquanto no mundo real pode ser desenvolver um projeto dentro do prazo ou liderar uma equipe multidisciplinar. Quem consegue fazer um cavaleiro e um ladrão trabalharem juntos provavelmente vai conseguir conduzir razoavelmente bem uma reunião com um psicólogo e um advogado. Assim, é possível supor que outra habilidade praticada é a de comunicação, tanto em desenvolver a assertividade como também a capacidade de ouvir os colegas.
Assim, o jogo pode ser visto como um ambiente de aprendizagem um local para de exercitar e desenvolver habilidades, como as gerenciais. De acordo com o tipo de jogo, o desenvolvimento de habilidades de liderança se torna uma hipótese provável e digna de estudos mais robustos sobre o assunto. Algo já observado por estudos e artigos considerando jogos eletrônicos e de tabuleiro. Se alguém aceitar a sugestão de estudos com o RPG eu agradeço se me citar. 😉