Uma das polêmicas do primeiro semestre de 2017 foi a série 13 Reasons Why ou “Os 13 Porquês” em português, produzida pela Netflix. A série é um drama juvenil que descreve os motivos que levaram ao suicídio uma aluna de ensino médio em uma pequena cidade americana.
Alguns críticos viram várias razões para elogiar a série, como os personagens aprofundados e a história bem contada, mantendo um mistério instigante. Enquanto outros a consideraram uma apologia ao suicídio e que rendeu alertas dos psiquiatras, como o apresentado apresentada pelo Dr. Luís Fernando Tófoli, com destaque para o número 6.
Creio que é importante e interessante observar como o suicídio foi a ponta do iceberg em um ambiente aparentemente feliz que esconde várias características tóxicas e insalubres. É possível ver como a própria estrutura da escola não favorece os estudantes. Como a própria geração atual realmente parece sofrer mais que as anteriores. E por fim, o papel da tecnologia e família em todos esses processos. Vou tentar evitar spoilers, mas recomendo ver a série antes de continuar a ler.
1. A estrutura da instituição escola
Antigamente as escolas tinham cargas horárias menores e menos deveres de casa. Porém, isso vêm mudando muito. A vida escolar hoje em dia gira em torno de mais conteúdo, exames que impactam na carreira do estudante e na própria imagem da escola, como ENEM, SISU e cia. E isso seguindo horários que comprovadamente não respeitam o ritmo natural dos estudantes. A escola é uma instituição, verticalizada, impessoal, sem rosto e que os vê como números. Um ambiente no qual eles têm poucos direitos, representatividade e sua presença é obrigatória. Portanto, é fácil entender porque é vista com justificada desconfiança pelos alunos da série.
Esse sistema não parece muito diferente de uma penitenciária, a própria arquitetura das escolas reforça isso. As escola da série demonstra não ter nem equipe suficiente para atender os estudantes, como demonstrado pelo papel do orientador escolar, ou está fechada em si mesma como instituição, como demonstrado pelo diretor da escola. Os estudantes vêem a equipe da escola como um bando de burocratas. Eu compartilhava essa sensação na minha época.
E, como agravante, os colegas de cadeia não ajudam muito. Geralmente os estudantes que praticam bullying, um dos temas da série, não são vilões mal-encarados que ninguém gosta. A série mostrou muito bem que geralmente os líderes, bonitos e bem vistos por outros alunos, administração da escola e comunidade são algozes bem comuns.
2. A fragilidade emocional dos estudantes

Existem várias críticas às gerações mais novas, chamadas por alguns de geração floquinho de neve, alegando que elas seriam reclamonas, mimadas e sensíveis demais. Porém, esse comportamentos talvez sejam mais do que mera briga ideológica, edição mais recente do conflito de gerações ou mesmo que seja culpa dos mais novos. Alguns estudos sugerem que a resiliência mental dos estudantes realmente está diminuindo tornando mais comuns transtornos como depressão, irritabilidade, abuso de entorpecentes, déficit de atenção, bipolaridade etc. Na série, o suicídio foi uma bomba mas é preciso ver várias outras esperando para explodirem.
Alguns sugerem que os problemas começam cedo, como o Dr. Gray, que trabalha a partir de uma perspectiva biológica e evolutiva e considera que o brincar livre é uma forma essencial para a criança aprender a lidar com o mundo e manter sua saúde física e mental e critica como isso vêm sendo involuntariamente expurgado. Assim, as crescentes pressões para tornar o tempo das crianças “mais produtivo” estariam cobrando um preço em termos de saúde mental. Algo que já abordei em outro artigo. Ele também apresenta cinco perspectivas sobre o assunto.
Evidências sugerem que crianças que brincaram pouco estão se tornando adolescentes inseguros e psicologicamente mais frágeis que antes. Tanto que já se fala em uma epidemia de doenças mentais nos EUA. Entre crianças o número de casos aumentou em quase 35 vezes nos últimos 20 anos. Imagine que tipo de adultos eles serão?
Lembrando que antigamente quase ninguém falava em ensino integral, eram 4 a 6 horas de aula por dia e acabou. Enquanto hoje em dia crianças já estão afastadas dos pais e institucionalizadas em berçários ou creches desde os 4 meses de idade. A Cris Leão do blog Antes que eles cresçam conta como estudantes de escolas públicas da Flórida tem 7 horas de aula por dia e várias simplesmente não tem recreio. Isso mesmo, 7 horas por dia em que você só levanta da cadeira para ir ao banheiro, mudar de sala e comer, sem contar o dever de casa. Imagine isso para uma criança de 7 ou 8 anos que adorava brincar? No sistema americano um estudante de quinta série pode ser submetido a até 14 horas de testes em um período de duas semanas.
Submeter uma criança de 10 ou 11 anos a uma carga que seria cansativa até para um concurseiro do DF me parece com o trabalho infantil em Bangladesh. Eles passam quase tanto tempo envolvidos com escola e tarefa escolares quanto os adultos em seus empregos. E os adultos pelo menos ganham dinheiro. Assim, não é muito surpreendente observar que a grande maioria dos sonhos relacionados à escolas sejam pesadelos.
3. A tal da tecnologia

À esse ambiente acrescentamos nossa onipresente tecnologia de informação e comunicação (TIC). Os mesmo recursos que permitem a você ler esse texto servem para catalisar e aumentar os efeitos de tudo o que acontece na série. Uma fofoca, foto indiscreta ou frase infeliz, qualquer coisa pode se tornar um assunto para a escola ou até mesmo a cidade. O impacto de informação difundida entre estudantes é apresentado à todo o momento.
Se antigamente bastava à vítima sair da escola para o assédio terminar agora a piada ou momento constrangedor pode ser visto por um país inteiro, fica eternamente público. O que começou com uma frase infeliz vira uma desonra eterna graças à nossa internet. E o impacto e pressão colocada sobre adolescentes, que já estão numa fase complicada, deve ser maior ainda.
4. Família, cadê?
Um outro aspecto são os pais, não pela sua presença, mas justamente pela ausência. Os pais parecem ter pouco ou nenhum vínculo com seus filhos. Em alguns casos aferrados à papéis autoritários ou simplesmente inseguros perdidos num função muito criticada e desconstruída, ausentes e alheios à vida dos filhos. Na adolescência o papel de regras e limites dos parece fazer mais falta ainda mais nesses tempos em que a cultura e tradição deixaram de ser balizadores do comportamento que se tornam transitórios e voláteis, o tempos líquidos do Baumann. Nesse ambiente falta força e resolução a pais perdidos enfrentarem o esforço da educação dos filhos. Porque, como diz o Cortella, “Toda a educação tem dentro dela um enfrentamento“. E esse ausência de referências pode ser ainda mais angustiante para os adolescentes.
Creio que não preciso nem falar do sujeito que é filho de uma viciada em drogas e que mora com um traficante ou dos pais ricos que simplesmente nunca aparecem não é? Surpreendente seria sair alguém 100% saudável desses ambientes.
Conclusão
Os adolescentes da série estão à deriva entre familiares com os quais têm poucos vínculos e uma escola que tem ainda menos. Aquela velha idéia de ser preciso uma vila, toda uma comunidade, para criar uma criança demonstra ser inexistente e praticamente inviável naquele ambiente. É cômodo jogar a culpa na “geração floquinho” mas isso não resolve e nem ajuda.
Existem duas formas de se atacar os problemas descritos:
- atacar os problemas diretamente ou;
- descobrir os fatores que alimentam esses problemas e trabalhar em cima deles.
O primeiro tem efeito imediato porém muito limitado. Geralmente fica um tanto policialesco e cai no conhecido “enxugamento de gelo”. Enquanto o segundo demora mais e exige um bom trabalho de pesquisa. A solução mesmo, ou pelo menos a redução do problema a níveis aceitáveis, provavelmente vai envolver ambas.
Renato, excelente post, como sempre.
Dois comentários curtos, sobre o conteúdo e em especial sobre a posição dos pais.
“Lembrando que antigamente quase ninguém falava em ensino integral, eram 4 a 6 horas de aula por dia e acabou.”
Embora tenha sido verdade no Brasil da minha infância, tenha a impressão que o ensino integral, manhã e tarde, tem sido a regra em países industrializados há muito tempo. A razão tem menos a ver com as necessidades da formação das crianças e adolescentes e mais com o regime de trabalho dos pais. De fato, se os pais de uma criança trabalham 8 horas (ou mais) em dias de semana, a política pública tem sido de garantir que as crianças estejam ‘ocupadas’ e protegidas durante o expediente dos pais. E com a intensificação do ciclo de trabalho essa tendência tende a se confirmar. Por outro lado, isso não implica necessariamente uma obrigação de manter as crianças em sala de aula, tendo horas e horas de conteúdo despejados nelas.
A alternativa implica uma de duas coisas: Ou os pais contratam uma pessoa que possa cuidar dos filhos até que o expediente acabe (uma babá, um curso de inglês ou de teatro) e se organizam para levar filhos de uma atividade/local ao outro; ou um dos pais reduzem o número de horas de trabalho para estar mais disponível ou ter mais flexibilidade para gerenciar essas mudanças de regime de ocupação das crianças.
Ou seja, sem escolaridade em tempo integral, os mais pobres e, tradicionalmente, as mulheres, saem perdedores. Pessoas mais abastadas podem encontrar mil soluções, enquanto os mais vulneráveis tem que escolher entre o apoio aos próprios filhos, ou a manutenção de um ritmo de trabalho. E, tratando-se de famílias ricas ou pobres, em nossas sociedades patriarcais, as mulheres tendem a ser as que acabam tendo que suportar as consequências práticas destas escolhas. Isso afeta carreiras, projetos de vida, etc.
“Um outro aspecto são os pais, não pela sua presença, mas justamente pela ausência.”
Sim, os pais são ausentes. Em parte pelo que indiquei acima: trabalha-se mais, e mais longamente do que nos anos 60-70. Espera-se mais dos trabalhadores, e com a crescente flexibilização das relações de trabalho, o regime de trabalho está cada vez mais imprevisível para os pais. Então as relações com as crianças se tornam mais difíceis e, durante a adolescência , tendem a passar pela pior fase.
Ter disponibilidade para os filhos tem custos e benefícios. Em termos políticos, eu não vejo como qualquer sociedade considera que estes custos devem ser suportados exclusivamente pelos pais (ou pela família no sentido mais largo, avôs e avós, etc…). Eu acho que esse é um tema para toda a sociedade, em qualquer período do seu desenvolvimento. A família, os vínculos entre gerações, estão de fato ameaçados pela expansão das relações liberalizadas de trabalho, e pela desconstrução sistemática da proteção social dos trabalhadores e das famílias.
Obrigado por ter oferecido uma oportunidade para pensar a respeito destas questões, Renato. Tudo de bom para você, e para os seus.
CurtirCurtido por 1 pessoa
Oi Matthias, eu concordo que o sistema educacional é moldado por pressões socioeconômicas. Ele próprio é uma ponta de iceberg de um contexto maior.
O ensino integral por aqui é um discussão recente por causa da reforma do ensino que preconiza o aumento da carga horária. Pois existe o interesse em ocupar os filhos para liberar os pais para a produção. E até mesmo a nossa elite concorda que isso deve ser expandido para todas as classes para garantir crescimento econômico. A idéia de tornar o tempo das crianças “produtivo” realmente se insere dentro dessa demanda. Além do fato de que nenhum pai se sente à vontade em deixar crianças soltas na rua hoje em dia. O que vai entrar em certas neuras como a idéia de sociedade do risco de Ulrich Beck e cia.
Como você disse tem custos e benefícios. Pesquisas indicam que os investimentos nos primeiros anos são os de maior retorno. e que o primeiro ano realmente demanda a atenção de cuidadores engajados , e ninguém melhor que os próprios pais. Tanto que acredito que europeus e canadenses criaram políticas públicas considerando isso. Assim, a série descreve de forma sutil os custos dessas decisões e pressões socioeconômicas.
Nesse aspecto, realmente as discussões sobre bullying, resiliência emocional das novas gerações e estrutura da escola até empalidecem frente aos fatores que geram esses problemas.É uma pena a série não avançar mais nisso, mas convenhamos, é possível perceber a sombra do elefante na sala.
No mais, eu que agradeço pelo comentário mais interessante desse blog nos últimos tempos.
CurtirCurtido por 1 pessoa